'Aprendi a arregaçar as mangas, não há tempo para lamúria', diz Zezé Motta
Dia desses, a atriz Zezé Motta estava se acomodando na poltrona do avião quando ouviu, pelo sistema de som da aeronave, que uma mulher estaria no comando daquele voo entre Rio de Janeiro e Brasília. Juntou-se aos passageiros que puxaram uma salva de palmas à comandante e sorriu quando o avião acelerou na pista, prestes a decolar —afinal, não faz tempo, pilotar aviões era trabalho exclusivo de homens.
A sensação de leveza não durou quase nada. Um homem ao lado virou-se para Zezé e, à guisa de piada, articulou algo como "uma mulher comandante, vamos nos arriscar".
"Um imbecil", define Zezé, ao relembrar a história. Por alguns segundos, enquanto olhava para o passageiro, indignada, ela pensou em devolver a grosseria. Em vez disso, aguardou a comandante concluir a decolagem e, uma vez liberada pela tripulação a levantar-se, procurou um assento disponível bem longe dali.
"Não ia fazer com que ele conseguisse mudar de ideia", conformou-se.
A amizade com Lélia Gonzalez
Aos 79 anos, Zezé já lidou de diferentes formas com comentários sexistas sobre a relação entre mulheres e trabalho. No caso dela, com um componente a mais. Porque, além de mulher, ela é negra —Zezé aprendeu sobre o cruzamento de múltiplas formas de preconceito (relacionadas a raça, classe e gênero) com uma das principais teóricas do feminismo negro, a filósofa Lélia Gonzalez, de quem foi "amiga, irmã e comadre", como define.
O encontro entre as duas ocorreu em 1976, ano em que Zezé despontou internacionalmente ao interpretar Xica da Silva no filme homônimo dirigido por Cacá Diegues —até hoje, passados 47 anos, ela o considera o trabalho o mais importante de sua carreira.
O fato é que, embora já fosse uma estrela, desejava ter mais embasamento para denunciar o racismo —como o que sofreu ao dirigir-se a uma emissora de TV em busca de trabalho e, ao encontrar uma colega, ouvir que "vão fazer duas novelas, Zezé, não é possível que não tenham um papel de empregada doméstica para você".
"Eu sentia a necessidade de ter um discurso robusto para fazer a defesa das mulheres negras", relata.
Numa manhã, enquanto lia o jornal, foi surpreendida pela notícia de que Lélia Gonzalez daria um curso sobre cultura negra no Parque Lage, no Rio de Janeiro. Matriculou-se e, na primeira aula, ouviu da professora que não havia mais "tempo para lamúrias".
"Lélia nos disse que tínhamos que arregar as mangas e virar o jogo. Isso foi fundamental para mim, para o resto da vida, para não ficar me vitimizando e dar o passo para a mudança", lembra.
As duas ficaram próximas e Lélia Gonzalez introduziu a atriz no movimento negro. No ativismo, Zezé Motta aprendeu a sentir-se bonita —bem diferente da época em que alisava o cabelo, planejava fazer uma cirurgia para afinar o nariz e queria comprar lentes de contato de cor clara. "Fazia de tudo para embranquecer, não gostava do tamanho da minha bunda. Tentava negar a minha raça", afirma.
Jeans, camiseta e sem sutiã
Quando despontou como artista, Zezé Motta precisou lidar com boatos de que, talvez, fosse homem. Em jornais dos anos 1970 —ela começou a trabalhar como atriz profissional na peça "Roda Viva", de Chico Buarque, em 1967 —, eventualmente algum crítico referia-se a ela como "o Zezé".
Nesse caso específico, Zezé reagia com humor. "Não me incomodava", ela diz, aos risos, atribuindo parte da confusão à "voz grave". Mas também ao biotipo.
"Como tenho peitos pequenos, não usava sutiã —não uso até hoje. Me vestia com jeans, camiseta e usava o cabelo curtinho. Certa vez, numa boate gay em Copacabana, dançava com um amigo quando alguém o cutucou. A pessoa perguntou: 'O negão é entendido?'", relembra, às gargalhadas. "Entendido" era uma gíria para gay nos anos 1970.
'Agoniada' com tempo livre
A militância e o investimento nos estudos sobre cultura negra não foram impeditivos para que Zezé Motta trilhasse uma carreira de sucesso no cinema, no teatro e na televisão. "Minha relação com o trabalho é compulsiva", diz.
Ela começou a pegar firme no serviço aos 16, quando conseguiu emprego na linha de produção de um fabricante de remédios. Seu trabalho consistia em colar o rótulo nos vidros dos xaropes produzidos pelo laboratório —e era preciso ser disciplinada e atenta o bastante para não sair do ritmo. Qualquer distração e o potinho avançava pela esteira diante dela, seguindo para a próxima etapa (talvez a colocação das tampas) sem o papelzinho colado nele.
"Era um trabalho simples, mas tinha que ser feito a sério", afirma.
Ali, naquela rotina frenética e mecanizada que lembrava a do clássico filme "Tempos Modernos", de Charles Chaplin, Zezé Motta adquiriria uma ética do trabalho que levaria consigo para a vida. Hoje, por mais que, eventualmente, reclame de estar sempre ocupada, prefere assim. "Se fico sem compromissos, no terceiro dia já estou agoniada", ela brinca.
Resultado disso é tudo em que Zezé está envolvida no momento. Neste 25 de julho —Dia Internacional da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha— ela estreia a terceira temporada do programa "Mulheres Negras", no canal "E! Entertainment", conduzindo entrevistas com figuras como a atriz Taís Araújo, a cantora Iza e a ministra da Cultura, Margareth Menezes.
No fim do mês, ela irá se apresentar em São Paulo no show "Atendendo a pedidos", em que canta clássicos da música brasileira —dentre eles, canções de Caetano Veloso, Luiz Melodia e Elizeth Cardoso. A música, aliás, é central na vida de Zezé Motta, que tem seis álbuns gravados. "Sempre gosto de ter duas cartas na manga", ela diz. "Ou mais". No caso dela, pode-se dizer, sem exagero, que tem um baralho inteiro.
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