Ao contar histórias de negros e LGBTs, cineasta conquista Netflix e Globo
O empenho da diretora Juliana Vicente, 38, em diversificar o audiovisual brasileiro —ambiente dominado por homens e pessoas brancas— levou-a a ser indicada finalista do Prêmio Inspiradoras na categoria Equidade de Gênero e Liderança. Ela é fundadora da produtora Preta Portê Filmes, especializada em obras com cunho antirracista, indígena e LGBT. Criada em 2009, a Preta Portê tem, desde 2014, uma equipe formada exclusivamente por pessoas negras.
Ao todo, foram 40 filmes produzidos (incluindo títulos internacionais) e mais de 100 prêmios conquistados. Só no ano passado, estrearam duas produções dirigidas por Juliana. O documentário "Racionais: das ruas de São Paulo pro mundo" está na Netflix e conta a trajetória do grupo de rap paulista. Já "Diálogos com Ruth de Souza", sobre a vida da atriz que dá nome ao filme, ganhou o prêmio de Melhor Direção de Documentário no Festival do Rio.
Para além do impacto dos trabalhos, Juliana reconhece que a presença dela no cinema e na TV é importante para a representatividade da mulher negra.
Hoje me sinto responsável pelo que estou fazendo, porque, em certa medida, tem gente que nem conheço se inspirando no meu trabalho. Juliana
Além de comandar a produtora, atualmente Juliana compõe o time de direção da novela das nove da TV Globo, "Terra e Paixão". Nesse papel, se emociona com a oportunidade de tratar de temas como o amor romântico entre dois homens.
Em julho, depois de dirigir uma cena entre os personagens Kelvin e Ramiro, ficou entusiasmada com a reação do público. "Os comentários nas redes sociais não eram sobre dois homens, mas sobre amor. Até meu pai se emocionou", conta.
Prêmio Inspiradoras | Categoria: Equidade de Gênero
Enquete encerrada
Total de 772 votosA história da menina preta que queria ser Paquita
Desde o início da carreira, com o curta "Cores e Botas", de 2010, cada um dos trabalhos da paulista carrega a marca da luta antirracista. O enredo recupera uma história pessoal de Juliana: o sonho de uma menina negra em ser uma das Paquitas da Xuxa.
"É um filme que articulou o racismo da sociedade brasileira a partir da questão da representação", analisa a jornalista Luísa Pécora, criadora do site "Mulher no Cinema", dedicado ao trabalho das mulheres em frente e por trás das câmeras.
Em suas obras, Juliana procura retratar a realidade de outros grupos minorizados, além de promover negros, indígenas e LGBT's a postos de tomada de decisão criativa e das narrativas que vão ser contadas no audiovisual.
"A Preta Portê não lança apenas os filmes da Juliana, mas também de outros artistas que compartilham seu interesse por obras de relevância social", diz. Entre eles está "Aquém das Nuvens", primeiro curta de Renata Martins, outro nome de destaque desta geração de cineastas.
Juliana construiu uma obra marcada pelo compromisso com questões sociais, explica Luísa. "Esse compromisso passa por contar histórias de pessoas negras. E para contar essas histórias, ela frequentemente estabelece parcerias com outras mulheres", afirma.
Racismo
Juliana viveu as primeiras experiências de racismo na escola. "Sou de uma família que ascendeu economicamente e não estava preparada para enfrentar o racismo", lembra, afirmando que foi "a portadora da má notícia" de que o preconceito persistia, apesar da boa condição financeira da família.
Ela começou a fazer teatro e, aos dez, ganhou o prêmio de melhor atriz em um festival de Vinhedo, no interior paulista. A honraria fez com que passasse a ser admirada pelos colegas de escola. "Me pediam autógrafo", conta.
Formou-se em cinema e letras. "Cores e Botas" foi exibido mundialmente em mais de 100 festivais. Depois, integrou o grupo do Berlinale Talents (2015), no Festival de Berlim, mesmo ano em que foi premiada com a coprodução "A Terra e a Sombra", no Festival de Cannes.
Na série documental "Afronta!", que também está na Netflix, pessoas negras são protagonistas, donas da voz, do discurso e do lado, até agora, pouco contado da história. "Entre 'Afronta!', 'Racionais' e 'Ruth', a gente cobriu quase 100 anos de existências pretas", diz Juliana.
Racionais Mc's: da produção do videoclipe ao documentário na Netflix
A relação de Juliana com os Racionais começou com a gravação do videoclipe de "Mil Faces de Um Homem Leal", produzido pela Preta Portê para o documentário "Marighella", de 2012. Ela, que não conhecia profundamente o grupo, se aproximou tanto dos rappers que, ao assistir ao primeiro show da turnê de 25 anos dos Racionais, em 2014, teve a ideia de fazer algo especial.
Entrou em contato com Eliane Dias, empresária do grupo, e acompanhou a turnê inteira registrando os shows. O plano era produzir um DVD da turnê. Mas a ideia mudou após realizar uma série de entrevistas com o grupo. "Foi improvisado, sem grana. Eles foram contando tudo, como se fosse uma sessão de terapia".
Quando viram o material pronto, os integrantes dos Racionais ficaram emocionados. "Nunca tinham visto a vida deles naquela perspectiva", lembra a diretora.
Em 2020, a Netflix entrou no projeto e Juliana teve tempo e financiamento para finalizá-lo. "Eu já tinha passado cinco anos mexendo no material. Minha reflexão com relação à questão racial havia evoluído".
Durante o processo de finalização de "Racionais", ela foi convidada para dirigir uma novela na Globo, algo em que nunca tinha pensado. O convite chegou em boa hora.
Em trabalhos prévios, eu era produtora, roteirista e diretora. A novela é um momento de poder me dedicar exclusivamente à direção. Juliana
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