Ela criou o primeiro fundo de investimento para mulheres negras no Brasil
Quando a pandemia de covid-19 parou o mundo em 2020, a cientista social e pedagoga Aline Odara estava desempregada. Além de preocupar-se em evitar o contágio do vírus, temeu pela segurança financeira. A aflição, por sorte, não durou muito.
Logo ela recebeu a notícia de que havia sido aprovada em um concurso da Prefeitura de Campinas (SP) para ensinar na educação infantil. "Isso revolucionou minha vida. Era um salário de professora, mas também a possibilidade de ter acesso a direitos econômicos, ser capaz de me organizar a longo prazo", diz.
Junto com a alegria, veio a vontade de que outras mulheres negras como ela pudessem viver em condições semelhantes. Já reconhecida entre familiares e amigos pelo espírito altruísta, era frequente que fosse abordada com pedidos de ajuda. Certo dia, uma amiga pediu a máquina de costura emprestada. Aline, então, propôs o seguinte: "Vamos fazer uma vaquinha para você comprar uma máquina?"
A ideia parecia boa, mas não nova: Aline sempre pediu dinheiro para ajudar outras pessoas. Na pandemia, intensificou o hábito. "Já estava até ficando com vergonha", conta, rindo.
Foi assim que, em setembro de 2020, teve a ideia de estruturar um projeto para reunir, inicialmente, 20 amigos que pudessem doar 20 reais mensais, totalizando 400 reais para ajudar mulheres negras em situação de vulnerabilidade econômica. Escreveu um e-mail e enviou à própria rede de contatos.
"Em cinco dias, surpreendentemente, reunimos 60 doadores recorrentes. Três meses depois, em dezembro de 2020, a rede tinha quintuplicado", diz ela, que concorre ao Prêmio Inspiradoras na categoria Empoderamento Econômico.
Nascia, assim, o Agbara, primeiro fundo de investimento de mulheres negras do Brasil, que já beneficiou mais de 2 mil pessoas com mais de 16 mil aportes financeiros e 64 formações técnicas em 14 estados brasileiros. Além de nove funcionárias e duas voluntárias trabalhando na instituição, ela também conta com um conselho estrelado, composto por 14 cadeiras.
Lá estão nomes como Suelaine Carneiro e a Maria Silvia, que dividem o posto em nome do Instituto Geledés; Jacyra Roque, da Lab Fantasma; e a jornalista Maju Coutinho, entre outras.
Só no ano passado, foram arrecadados R$ 464 mil. E, este ano, o total deve ultrapassar R$ 1,5 milhões. Além de financiar empreendimentos de mulheres negras, o Agbara oferece mentorias e oficinas.
"Para elas conquistarem um aporte financeiro no final, passam por uma jornada de formação técnica sobre gestão. Pode ser gestão de negócios, instituições, carreira e vida. Também fazem formações políticas voltadas para raça e gênero. Assim, aprendem sobre a história do nosso povo", conta Aline.
O Agbara organiza um festival cultural cuja programação inclui uma feira de economia criativa, workshops e palestras. Em 2022, o evento reuniu 1.500 pessoas no Sesc Campinas. O próximo está marcado para setembro, em São Paulo. Em breve, o Agbara irá colocar em funcionamento um núcleo de pesquisa e memória da mulher negra.
A instituição faz parte de importantes redes, como o GIFE (a maior rede de filantropia do país), a Comuá (voltada para a justiça social), o WBO (Washington Brazil Office, que apoia movimentos sociais brasileiros nos Estados Unidos), a ABFE (sigla para Association of Black Foundation Executives, rede americana de filantropia negra) e a Women's Funding Network (uma rede semelhante ao Agbara, para mulheres negras, sediada nos Estados Unidos).
Prêmio Inspiradoras | Categoria: Empoderamento Econômico
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Total de 2590 votosMais do que um investimento financeiro
Bianca Oliveira é dona, há quatro anos, do restaurante Casa do Dendê Acaraju, de culinária ancestral, na capital sergipana. Mãe solo, ela trabalhava de casa para gerar renda e, ao mesmo tempo, cuidar da filha. Há dois anos, abriu um espaço físico para o restaurante, mas ainda sentia que os negócios estavam estagnados. Então participou do AG1, programa de formação para empreendedores negros do Fundo Agbara.
"Conheci a Aline Odara em um evento. Ela me contou sobre a formação AG1, o Fundo Agbara e decidi me inscrever em uma das turmas de formação."
Foram dois meses de capacitação, duas vezes por semana. Bianca tinha aulas com empreendedores negros sobre temas que iam de gestão das finanças até estratégias de negócios. Ela se formou em fevereiro de 2023 e, ao final, recebeu um aporte de R$ 5 mil para investir no restaurante.
"Foi com a formação que consegui ver, pela primeira vez, o meu negócio no papel. Consegui criar um plano e entender a minha missão."
Graças ao programa, ela aprendeu a gerir as finanças e o estoque da empresa, o que, acredita, fez com que os negócios prosperassem. "O aporte financeiro que recebemos no final da formação foi apenas um empurrãozinho", diz a empresária.
Um projeto ancestral
A prática da "vaquinha" é antiga na vida de Aline. E o Agbara, ela costuma dizer, é um projeto ancestral. Em iorubá, a palavra significa potência. E o funcionamento do fundo remonta aos primórdios da história africana no Brasil, quando os negros não podiam professar sua fé abertamente.
Assim foram criadas as irmandades, comunidades de africanos e afro-brasileiros que funcionavam (e algumas ainda funcionam) no seio da Igreja Católica. Além do papel espiritual, elas também serviam como uma rede comunitária de cunho social e político. Ali, homens e mulheres se reuniam e arrecadavam recursos para beneficiar o grupo.
"Foram as primeiras organizações filantrópicas do país", diz Aline. "Os integrantes conseguiam ajuda médica e funerária, além de comprar a alforria de alguns membros."
Quando criança, Aline não sabia de nada disso ao sair em busca de trocados para comprar chocolate ou algo que os amiguinhos precisassem —hábito que a acompanhou até a entrada na faculdade, para conseguir se manter e ajudar os colegas que, como ela, estudavam graças ao Programa Universidade para Todos, o Prouni, do governo federal, que oferece bolsas de estudo.
Enfrentava também racismo no ambiente doméstico. Nascida em uma família de pessoas brancas (o pai era negro, mas conviveram pouco), sabia que era diferente.
A minha família sempre deixou muito evidente que eu não era como eles. Sofri muito racismo dentro de casa. Aline
Na adolescência, conheceu a namorada de um tio, negra retinta. "Ela me puxou de canto e falou: 'Aline, você não é como eles, então pare de querer agir como eles'. Ali, me localizei", conta.
Assim, começou uma busca para compreender sua ancestralidade, o que a levou à descoberta sobre as irmandades e ao candomblé —Aline é filha de Ogum. "O Agbara é a continuação das irmandades."
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