Para cada criança com acesso a aborto legal, 31 dão à luz em Roraima
Entre 2018 e 2021, para cada menina que teve acesso ao aborto legal, 31 deram à luz em Roraima. Levantamento inédito da Gênero e Número revela que, no período, 251 crianças de 10 a 13 anos deram à luz no estado, enquanto oito interromperam a gestação de acordo com a lei.
Com a maior taxa de fecundidade no país entre meninas de 10 a 14 anos, Roraima conta com uma única equipe autorizada a realizar o serviço de aborto legal, que atende no Hospital e Maternidade Nossa Senhora de Nazareth, na capital Boa Vista. O procedimento é permitido em menores de 14 anos grávidas, uma vez que qualquer relação sexual com crianças nesta faixa etária é tipificada como estupro.
Ilda Mani Isaquir, ginecologista e obstetra do Nossa Senhora de Nazareth, afirma que nunca se negou a realizar um aborto legal, mas confirma que já orientou meninas e mulheres a não realizarem o procedimento, pois diz não concordar com a interrupção voluntária da gravidez.
Não é só por questão religiosa. Se fosse comigo, se eu descobrisse o nenenzinho se formando, não teria problema em criar essa criança. Ou entregar para adoção" Ilda Mani Isaquir
Segundo Gabriela Rondon, advogada e pesquisadora da Anis (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero), não é permitido orientar ou opinar durante o atendimento de casos de aborto legal.
"Não pode haver, por parte do profissional da saúde, nenhum tipo de interferência ou manifestação das crenças pessoais na forma de conduzir o acolhimento, a conversa e a prestação de informações", diz. Os profissionais de saúde também não devem, segundo a especialista, dar ênfase indevida a supostos riscos que não sejam embasados em evidências científicas.
Venezuelana forçada a trocar sexo por comida
A assistente social Lívia de Oliveira Lima, da equipe do aborto legal da Maternidade Nossa Senhora de Nazareth, afirma que usa como referência a portaria nº 2.561, aplicada em 2020, durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), que previa a necessidade da equipe médica notificar a autoridade policial em caso de aborto por estupro. A portaria foi revogada em janeiro de 2023, no primeiro mês do governo Lula (PT).
Terezinha Muniz, titular da Defensoria Especializada de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher, ressalta que o "conservadorismo" da população local é um obstáculo para a luta contra as violências vividas pelas mulheres em Roraima.
Muniz afirma que há casos em que a equipe médica faz exigências não previstas em lei para realizar o aborto legal, como o registro de Boletim de Ocorrência ou a compatibilidade da idade gestacional com a data da violência sexual.
O defensor público Januário Lacerda foi acionado em agosto de 2022 para intervir no caso de uma mulher venezuelana que, mesmo após registrar Boletim de Ocorrência por estupro, teve o serviço do aborto legal negado pela Maternidade Nossa Senhora de Nazareth.
Segundo Lacerda, a equipe médica não quis realizar o procedimento porque a idade gestacional não batia com a data em que o estupro teria ocorrido no Brasil. Só que, segundo o defensor público, a mulher havia sofrido violência sexual no percurso de migração. A jovem de 18 anos foi estuprada em um garimpo no seu país de origem e forçada a trocar serviço sexual por comida por um homem que lhe ofereceu carona até o Brasil.
Após escutar a vítima, Lacerda identificou que a gestação ocorreu a partir das violências sofridas no trajeto. Ele procurou a Delegacia da Mulher para refazer o relato. A delegada refez o Boletim de Ocorrência e a vítima conseguiu acesso ao serviço do aborto legal na Maternidade Nossa Senhora de Nazareth.
Gabriela Rondon reforça que não é necessário registrar boletim de ocorrência para abortar legalmente no Brasil. O BO se faz necessário apenas se a mulher tiver o desejo de responsabilizar o agressor pelo crime.
Idade gestacional é estimativa
Também usada como referência na Maternidade Nossa Senhora de Nazareth, a norma técnica de Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual Contra Mulheres e Adolescentes do Ministério da Saúde informa que o médico deve assinar um parecer técnico "atestando a compatibilidade da idade gestacional com a data da violência alegada, afastando a hipótese da gravidez decorrente de outra circunstância diferente da violência sexual".
Outra norma técnica, sobre Atenção Humanizada ao Abortamento, do Ministério da Saúde, recomenda que o médico assine o atestado de compatibilidade da idade gestacional com a data referente à violência para as situações de aborto legal em decorrência de estupro.
O Ministério da Saúde informou que as normas técnicas citadas pela reportagem são as últimas que estiveram em vigência, porém estão desatualizadas e em processo de revisão.
Segundo as diretrizes, "os profissionais de saúde não devem temer possíveis consequências jurídicas, caso revele-se posteriormente que a gravidez não foi resultado de violência sexual".
"É possível que a mulher se engane sobre datas e que, dentro de um certo lapso, confunda e sobreponha memórias. A idade gestacional também é uma estimativa", alerta Rondon.
É preciso que a equipe multidisciplinar tenha essa flexibilidade no atendimento à mulher" Rondon
Segundo Januário Lacerda, a Defensoria Pública não costuma ser demandada para intervir no acesso ao serviço do aborto legal em casos de meninas menores de 14 anos. Ele acredita que isso ocorre porque o direito não é de conhecimento das vítimas ou de seus familiares.
A Secretaria de Estado da Saúde de Roraima (Sesau/RR) informou que os casos que ingressam no Hospital Materno Infantil Nossa Senhora de Nazareth para atendimento entre 20 e 22 semanas devem ser rigorosamente avaliados, considerando a possibilidade de erro de estimativa da idade gestacional.
A Sesau/RR afirmou ainda que os dados relacionados à apresentação de Boletim de Ocorrência para interrupção da gravidez são sigilosos. A secretaria não confirmou o número exato de profissionais que atuam no serviço de aborto legal, nem comentou sobre os dados levantados pela reportagem sobre o caso da imigrante que precisou apresentar BO para realizar o aborto legal ou sobre a declaração da médica que afirmou ter desencorajado pacientes a realizar o procedimento.
Estrutura de lona
Todos os procedimentos de aborto legal em Roraima são realizados no Hospital e Maternidade Nossa Senhora de Nazareth, que desde junho de 2021 faz os atendimentos na estrutura de lona do antigo hospital de campanha montado durante a pandemia para atender pacientes de covid-19.
A equipe designada para os atendimentos de aborto legal é composta por, pelo menos, sete médicos, além de enfermeiros, assistentes sociais e psicólogos, segundo Ilda Mani Isaquir, que integra o time.
Para a ginecologista e obstetra Eugenia Moura, presidente da Associação de Ginecologia e Obstetrícia de Roraima e plantonista na Maternidade Nossa Senhora de Nazareth, o acesso ao serviço do aborto legal não existe quando apenas uma equipe é designada para cumprir a função.
"E quando a equipe do aborto legal não está lá [de plantão]?", indaga a ginecologista, que não integra a equipe do serviço de aborto legal na Maternidade.
Resgatadas de garimpo
Das meninas que deram à luz entre 2018 e 2021 em Roraima, 15% tiveram seus filhos em aldeias indígenas e 12% em domicílio.
O levantamento feito pela Gênero e Número também revela que 65% das meninas entre 10 a 13 anos que tiveram filhos são indígenas, ainda que os povos originários representem 11% da população do estado, segundo o IBGE.
A defensora pública Jeane Magalhães Xaud tem acompanhado o caso de duas adolescentes descendentes de indígenas que foram resgatadas de um garimpo na região. Elas haviam sido cooptadas sabendo que trabalhariam com prostituição, mas desconheciam que seriam submetidas ao trabalho escravo.
Como Roraima está localizada em uma tríplice fronteira (Brasil, Venezuela e Guiana), segundo Xaud, a situação é ainda mais delicada. Ela diz que há investigações em curso sobre casos de tráfico de meninas, em especial de meninas indígenas, e exploração sexual em situação de trabalho forçado ou análogo à escravidão em garimpos e redes de pedofilia.
Esta reportagem foi produzida com apoio do Instituto Patrícia Galvão.
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