'Perdi filha e marido num incêndio e decidi ir à prisão ver o criminoso'
Juliana Gava, 39, estava dormindo quando o prédio onde ela morava começou a pegar fogo, em Barbacena (MG). Ela, o marido Thiago, 38, e a filha Helena, 4, moravam no último andar do edifício e, quando foram fugir, o fogo já estava muito intenso. O casal conseguiu sair, mas Helena ficou.
Thiago retornou ao prédio em chamas diversas vezes para tentar salvar a filha e teve 80% do corpo queimado. Naquele dia, além da casa, Juliana perdia sua família toda.
Tempos depois, ela descobriu que o incêndio foi criminoso. Em uma tentativa de recomeçar a vida, decidiu visitar o autor do crime no presídio para perdoá-lo.
Hoje, casada novamente e à espera do segundo filho, ela contou a Universa como foi o processo de luto.
"Era quase impossível respirar ali"
"Era um domingo, madrugada do dia 15 de março de 2020. Eu estava no apartamento com a minha família e, por volta das 5h, acordamos com estouros, tiros, barulhos de alarme de carro disparando. Ainda estava escuro lá fora, mas o Thiago, meu marido na época, levantou e olhou na janela. Morávamos no quarto andar. Naquele momento, ele não viu nada de diferente na rua.
Quando acendemos a luz, tinha uma fumaça branca e um cheiro de fio queimado na sala. Imaginamos que seria um curto-circuito e ele foi pegar o chinelo no quarto para resolver o problema. Quando voltamos para a sala, a fumaça já estava muito forte e tinha aumentado. Foi então que decidimos sair do apartamento.
Ele pegou a nossa filha, a Helena, no colo e eu abri a porta para descermos. Então, veio uma fumaça muito preta, que não deixava a gente enxergar nada. Parecia que estávamos em uma chaminé. Ela entrou rapidamente por todo o meu apartamento. Quando coloquei o primeiro pé no degrau, desci caindo porque a escada estava toda escorregadia. Daí, não enxergava mais eles.
Escutei os dois caindo na escada e a Helena respirando, mas não os via. Era quase impossível respirar ali. Hoje falo que foi por Deus que saí daquele prédio. Quando cheguei na rua, olhei para o edifício e vi que estava em chamas. Era um incêndio de proporção enorme.
Imaginei que minha família não tinha conseguido sair, até que vi o Thiago, sem a Helena. Ele disse que não tinha conseguido salvá-la, mas voltou ao prédio inúmeras vezes. Empurrou todos os bombeiros tentando entrar, mas era impossível. No fim, ele ficou com 80% do corpo queimado. Na última vez que saiu do prédio, ele pediu ajuda porque o corpo já estava muito queimado.
Minha filha morreu naquele incêndio. O Thiago ficou internado 28 dias, foi transferido para Belo Horizonte, porque era uma situação muito grave, mas, no dia 12 de abril, um domingo de Páscoa, morreu também.
Soube um tempo depois que, quando foram intubá-lo, ele pediu para que não fizessem nada com ele, porque a filha tinha morrido e ele não queria mais viver. Mas ele passou pelo procedimento e depois não sobreviveu.
Nós perdemos absolutamente tudo: móveis, roupas, carro. Uma coisa que me marcou muito foi que, no dia do enterro da Helena, não tinha como vesti-la. Na época, eu tinha uma loja de roupa infantil e fui até lá pegar uma roupa para colocar na minha filha. Mas isso tudo foi muito pequeno comparado a perda da minha família. Eu perderia tudo, se eles tivessem ficado vivos.
No dia da morte do Thiago, fiquei sabendo o que tinha acontecido. Já tinha a informação de que havia sido um incêndio criminoso, mas, naquele dia, soube que o autor era ex-marido de uma moradora do prédio que, por vingança, entrou no edifício naquela madrugada e colocou fogo no carro dela.
Como a garagem do carro era muito apertadinha, os outros carros também pegaram fogo. Foi tudo muito rápido, porque tinha gasolina, pneu... Outros moradores também precisaram ser hospitalizados, mas eles sobreviveram.
[Segundo a Polícia Civil de Minas Gerais, além da morte de Thiago e Helena, o incêndio causou asfixia por fumaça em vários moradores, inclusive idosos e crianças. Não há estimativa de quantos atendimentos foram feitos naquela noite, mas foram registrados 7 carros destruídos e 3 danificados. Conforme o Corpo de Bombeiros, foram retiradas do local 11 vítimas com vida, todas com provável quadro de inalação de fumaça.]
"Viver na dor ou no amor"
Logo após o incêndio, começou a pandemia de covid-19. Fiquei meses morando com a minha mãe, procurando um rumo e um sentido para tudo. Tive muito apoio da minha família e dos meus amigos. Em determinado momento, percebi que precisava fazer uma escolha: viver na dor ou no amor.
Pensei que se escolhesse a primeira opção me tornaria uma pessoa amarga, não falaria sobre o que ocorreu da forma que eu falo hoje. E eu só vivi amor com a Helena e o Thiago. Quando pensava neles, me vinha o amor.
Em agosto de 2020, tomei a decisão de ir conversar com o homem que colocou fogo no meu prédio. Ele ainda estava preso na minha cidade.
Não queria carregar o ódio no meu coração. Quem é mãe sabe que, quando acontece algo com o filho, a gente vira uma leoa. Eu precisava ver o perdão, olhar nos olhos dele.
Quando decidi visitá-lo, as pessoas não aceitavam de primeira. Acharam que tentaria agredi-lo, mas depois foram entendendo o motivo da visita. Ele também autorizou que eu fosse visitá-lo. Eu não avisei para ninguém próximo que faria isso, porque sabia que não teria apoio.
No dia, tive oportunidade de conversar com ele por mais de uma hora. Ele chorava muito, pedia perdão o tempo todo e eu pude entender que era um homem que realmente estava doente. Já tinha pedido ajuda várias vezes, estava enfrentando um processo de depressão, além de alguns problemas sociais. Nada que justificasse o que ele fez, mas tive oportunidade de olhá-lo com outros olhos.
Perdoei. Vi que era um a pessoa doente e nunca tinha tido a oportunidade de ter uma família igual a que tive.
No final de nossa conversa, entreguei uma Bíblia que tinha levado com umas passagens grifadas para ele. E, então, ele pediu para ler uma oração para mim. Foi justamente a que eu fazia com o Thiago todas as noites.
Isso foi uma resposta que eu estava fazendo a coisa certa, que aquele era o caminho. Saí de lá muito mais leve.
O perdão é libertador. Perdoar não é esquecer. As pessoas confundem muito isso. Só não carrego ódio ou mágoa no coração. Não queria ser a juíza da vida dele. Estar lá e praticar esse ato foi a semente para o meu renascimento. Atualmente, ele cumpre prisão domiciliar. Acredito muito na justiça divina. Não conseguiria seguir adiante se eu carregasse qualquer ódio.
Senti que estava dando um passo para começar uma nova vida. Foi uma decisão muito pensada. Refleti muito sobre a vida que tive com a Helena e o Thiago. Não foi fácil, mas sabia que era importante. Nada que eu fizesse traria eles de volta, mas precisava seguir. Tinha uma vida pela frente.
Recomeço
Depois disso, comecei a pensar em um novo emprego, a tentar ver a vida com outros olhos, a alimentar no coração a gratidão. Na época, tive oportunidade de abrir uma floricultura e foi muito bacana. Hoje, já não trabalho mais com isso, mas foi algo que me ajudou muito. E logo depois veio a faculdade de psicologia.
Naquela época, ajudei outras pessoas que estavam também passando pelo luto. Montei um grupo na paróquia da minha igreja para pessoas enlutadas e desse grupo nasceu a psicologia. Era um sonho antigo fazer essa faculdade, mas eu sempre fui adiando. Então, resolvi não adiar mais.
Foi nesse período também que conheci o meu atual marido. Nos conhecemos por meio de amigos em comum e começamos a viver uma história transformadora e restauradora. Temos os mesmos objetivos, pensamentos e a mesma fé, o que ajudou muito. No final do ano passado, nos casamos. E, agora, estamos aqui na espera de um menino, o Bonifácio.
Carrego muita gratidão pela história vivida com o Thiago e a Helena. Vivi um casamento super saudável com o Thiago durante 8 anos. Com o nosso namoro, foram 13 anos. Nunca dormi um dia da minha vida sem falar com ele. A gente se respeitava e era uma família realmente consolidada. Tínhamos nossos problemas, mas era algo prazeroso de viver. E estar ao lado dos dois e alimentar isso no coração é muito bom.
E a Helena me ensinou muito. Ela era uma criança intensa. Tudo o que eu fiz com ela foi muito marcante. Digo que era uma criança de outro mundo pelas coisas que ela falava e a forma que agia, desde pequena já era muito espiritualizada.
Desde que começou a falar, sempre falava sobre virar estrelinha e chorava dizendo que não queria isso. Cheguei a perguntar na escola se estavam falando sobre morte, porque me assustava a forma como ela dizia.
No sábado, antes de ela morrer, a gente estava brincando e ela falou pra mim que queria contar um segredo, que o pai dela não poderia saber. Disse: 'mamãe, você sabia que eu vou morrer?'. Eu levantei da cama na hora e falei: 'por que você está falando isso? Você sabe que mamãe não gosta'. E ela disse que o papai do céu estava aparecendo para ela todos os dias de noite e que ela estava com medo de ficar sozinha.
Fiquei apavorada, mandei mensagem para a minha mãe contando isso e disse que iria procurar um psicólogo. E no domingo aconteceu tudo isso.
Acredito que ela sabia que isso fosse acontecer e que ela tinha um propósito muito grande aqui no mundo de espalhar amor, de mudar a vida das pessoas com essa história.
Falar de morte é tabu, ninguém quer falar, mas todo mundo já passou por um processo de luto. Acho que a fé vem para dar uma força para esse momento. E a psicologia vem para me transformar e ajudar muitas pessoas. Recebi muitos relatos de gente que, ao saber do meu depoimento, valorizam mais a vida, a família.
Agora, por meio da psicologia, quero continuar ajudando as pessoas, especialmente na área hospitalar, onde existe gente vivendo perdas diariamente. Ninguém está preparado para a passar pela morte, mas nós conseguimos sobreviver."
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.