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'Acordei, ele fechou a calça': secretária do RJ relata importunação sexual

Adriana Negreiros

De Universa, em São Paulo

17/08/2023 04h01

Uma ação do grupo L'Oréal Brasil e da prefeitura do Rio de Janeiro colocou, ontem, uma centena de estátuas de mulheres —em tamanho real— na praça da Cinelândia, região central da cidade.

Daquelas, 88 foram pintadas de laranja, simbolizando a porcentagem de mulheres que já foi assediada na rua, no trabalho e em outros ambientes, segundo pesquisa do Instituto Ipsos encomendada pela L'Oréal.

A ação marcou o início da campanha Stand Up —uma parceria entre a prefeitura e a empresa de beleza para combater o assédio em espaços públicos e privados. A atriz Taís Araújo empresta o rosto à campanha, em imagens que serão espalhadas em diferentes pontos da cidade. O programa prevê a capacitação de servidores do município para que possam identificar situações de assédio e prestar auxílio às vítimas. Quem não trabalha no governo também pode fazer o treinamento.

Até o final do ano, o grupo L'Oréal quer firmar parcerias com outras cidades e capacitar 75 mil pessoas para atuar no combate à violência de gênero no Brasil. "O assédio e a importunação sexual que acontece nas ruas são a principal causa de incômodo para as brasileiras", diz Maíra Motta, diretora nacional da marca no país, citando a pesquisa do Ipsos.

Uma das 88 estátuas de mulheres pintadas de laranja poderia corresponder à secretária de Políticas e Proteção da Mulher do Rio de Janeiro, Joyce Trindade, que está à frente da parceria com a L'Oréal, representando a prefeitura.

Há dez anos, quando tinha 16, ela sofreu importunação sexual dentro de um ônibus, a caminho do estágio. Em entrevista a Universa, Trindade contou a história em entrevista pela primeira vez. "Fui uma mulher que também passou por violência. A lembrança não é confortável, obviamente, mas é importante compartilhar experiências", diz.

Universa: Por que o Rio de Janeiro é a primeira cidade a participar do Stand Up?
Joyce Trindade: No sentido turístico e cultural, o Rio é lido como a capital do país. Assim, a campanha vai reverberar para outras cidades. Além disso, comete-se muito assédio no Rio. Somos uma das capitais mais violentas contra as mulheres. A cada 15 dias, aproximadamente, o Rio perde uma mulher para o feminicídio.

Diferentes pesquisas mostram aumento dos casos de violência contra a mulher nos anos recentes. Isso acontece porque há mais violência ou mais canais de denúncia?
A violência contra a mulher sempre existiu, mas agora temos instrumentos para pedir ajuda. Além da questão legal, mulheres têm falado mais, uma para as outras, sobre as violências. Agora nós sabemos identificar a violência e dar nome a ela. Denunciar é um direito da mulher, não é uma obrigação. Para fazer a denúncia, ela precisa se sentir forte e segura para dizer "eu passei por isso".

Quase todas as mulheres já enfrentaram situações de assédio e a senhora certamente não é uma exceção. Houve alguma que nunca conseguiu esquecer?
Sim. É a primeira vez que falo disso em público. Tinha 16 anos e, todos os dias, pegava o ônibus para ir da casa dos meus pais a uma cidade vizinha, onde estagiava como professora de informática. Pegava sempre o mesmo ônibus, no mesmo horário, então os passageiros já se conheciam.

Joyce Trindade em ação na Cinelândia, no Rio de Janeiro. Ao fundo, a atriz Taís Araújo Imagem: Rafaela Cassiano

Comecei a observar o olhar estranho de um homem. Pensei que era coisa da minha cabeça. O trajeto demorava mais de uma hora, então um dia eu dormi durante a viagem. Quando despertei, notei que o homem estava fechando a calça. O ônibus estava quase vazio, mas uma senhora viu que ele estava se masturbando e falou alguma coisa. Então ele deu sinal e desceu correndo do ônibus.

E o que aconteceu depois?
Quando cheguei em casa, contei para minha mãe. Mas só viemos a ter a dimensão daquilo anos depois. Não sabíamos que era um crime. Se eu tivesse visto algo na televisão, ou num panfleto, saberia identificar. Por isso campanhas contra o assédio e a importunação sexual são tão importantes.

Eu tenho uma irmã de 17 anos que pega o ônibus para ir à escola todos os dias. Minha luta é para que ela não passe por isso, nem minhas filhas, no futuro. A missão de toda mulher é também combater e enfrentar a violência contra a mulher. Fazemos parte de um ciclo de apoio.

Fala-se muito sobre assédio em espaços públicos, mas estatísticas mostram que a maioria das violências ocorre na intimidade. Isso foi pensado pela campanha?
Sim. Mais de 80% dos crimes de feminicídio são cometidos por alguém que tinha um relacionamento direto com a vítima. Um dos pontos fortes da campanha é a comunicação. Mulheres devem ser informadas sobre formas de sair da violência, sobre como ir para abrigos sigilosos quando correm risco de vida, por exemplo.

O ministério das Mulheres anunciou recentemente a formação de uma marcha contra a misoginia. A prefeitura do Rio trabalha em conjunto com o governo federal no combate à violência de gênero?
Há uma grande parceria nossa com o ministério, que está em reta de reestruturação. Nos últimos 6 anos, o orçamento destinado à mulher saiu de um cenário extremamente positivo para um de apenas R$ 24 milhões. Isso não custeava nem sequer o programa do número 180 [canal de denúncia por telefone], a principal política de enfrentamento à violência contra a mulher do Brasil e uma das maiores da América Latina.

Nos últimos 2 anos da minha gestão, não tive nenhuma notificação do número 180 chegando ao Rio. Isso significa que mulheres talvez tenham morrido pedindo ajuda. No momento, o 180 está sendo reconstruído.

A prefeitura também está em negociações com o governo federal relativas à implementação da Casa da Mulher Brasileira [centro de atendimento à mulher em situação de violência doméstica] —o Rio de Janeiro será uma das primeiras cidades contempladas com o equipamento. Nos últimos seis anos, não foi construída nenhuma. No governo Dilma Rousseff, foram apenas 7.

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