Lia Clark: 'Como drag me sinto poderosa. Sendo preto e gay, não sentia'
Hysa Conrado
De Universa, em São Paulo
07/09/2023 04h00
É ela quem canta, em alto e bom som, "aceita, eu sou gostosa!" no hit "Chifrudo". Uma das pioneiras no universo do funk, a drag queen Lia Clark fez carreira cantando putaria, como ela mesma diz que gosta e prefere, porque se sente livre ao verbalizar o que ainda parece ser um tabu para muita gente. A cantora foi uma das atrações do The Town no dia 3 de setembro, festival que acontece em São Paulo nos primeiros dias deste mês.
"Gosto de instigar as pessoas e do desconforto que causo ao cantar esse tipo de música", afirma. Por trás da montação, no entanto, existe Rhael Lima de Oliveira, 31, um rapaz tímido, que se descreve como um tanto inseguro, que já trabalhou com comércio exterior e estudou engenharia de produção quando ainda morava em Santos, no litoral sul paulista, onde nasceu.
Em entrevista a Universa, Lia Clark fala de carreira, autoestima e conta porque não ficou rica mesmo com o estrelato. E para quem acha que cantar putaria pode ser sinônimo de exposição exagerada, ela é do tipo "low profile" e prefere a discrição quando o assunto é vida pessoal e internet.
Universa: Você foi a primeira drag queen no universo do funk. De que forma você foi recebida nesse meio ainda muito heteronormativo?
Lia Clark: Comecei a fazer funk em 2016, sem pretensão nenhuma, para me divertir porque sempre me identifiquei e escutei funk. Minha drag sempre foi baseada em mulheres do funk. E eu, a princípio, fui abraçada pelo meio LGBT e até hoje é majoritariamente essa galera que me consome, que vai aos meus shows e que curte meu trabalho.
Mas consegui algum respeito no meio do funk, sim, principalmente no meio das mulheres, como Pocah, Valesca e Tati Quebra Barraco. Mas realmente é um meio muito machista e ainda tem uma distância da galera cisnormativa aceitar que uma drag está fazendo funk. Mas é o preconceito do dia a dia.
Suas músicas têm letras explícitas e você já falou que gosta mesmo de cantar putaria. O que mais te chama atenção nesse estilo?
Gosto muito, porque acho que isso traz uma liberdade não só pra mim, mas pra todas as pessoas. Sexo e putaria são um grande tabu na sociedade, mesmo sendo algo que quase todo mundo pratica. Então me sinto livre cantando isso. Gosto de brincar com esse universo, de instigar as pessoas, do duplo sentido, gosto do desconforto que traz em algumas pessoas ter alguém cantando esse tipo de música.
Acho que isso é o que eu mais gosto. E me sinto muito gostosa. Gosto muito da minha drag, porque ela exala sensualidade, corpão, carão e acho que combina muito com o funk putaria.
Como foi o processo do nascimento da drag Lia Clark?
Foi em 2013. Ela veio de uma vontade de me ver de uma outra forma. Era uma época em que vinha muito para São Paulo, para as boates e comecei a ter muito contato com o meio LGBT, porque lá em Santos, de onde sou, até existia, mas era muito pequeno e aqui as coisas se expandiam e eu ficava maravilhada.
Sempre ficava chocada com as transformações quando via o Trio Milano, que é um trio de drags de São Paulo. Também queria ver como ficaria. A partir do momento que me montei, me senti livre, poderosa e era algo que naturalmente não me sentia sendo gay, preto e afeminado. A gente sempre é muito invisibilizado, não só dentro da sigla, mas fora também.
Quando me montei, acendeu uma coisa dentro de mim de que sou uma pessoa incrível. Essa arte me deixa livre de alguma forma e desde então foi um grande processo para me entender como pessoa e a entender esse lado feminino que sempre esteve dentro de mim, consegui me expressar muito melhor e com menos amarras.
Quando você é um menino e é super afeminado, você é visto de uma forma totalmente diferente, é apenas errado. Foi uma forma também de ver que estava tudo bem com o meu jeito de ser.
Você já disse que ficou envergonhada na primeira vez que sua mãe te viu montada. Por quê?
Acho que tem um choque de geração, quando nasci era algo que não era muito falado e não era muito uma coisa de se ter orgulho. Tenho certeza que minha mãe, quando me pariu e me viu criança, não me olhava e sonhava em ter um filho drag queen, cantando funk putaria.
Dentro de mim sei que tem essa diferença, de como fomos criados em diferentes universos, e isso me causou não uma vergonha, estava mais nervosa em como ela ia se portar, como que ela ia se sentir, como ia me sentir, porque dentro da minha família sempre foi um tabu.
Sempre fui uma criança muito afeminada, mas nunca conversamos sobre isso, e quando ela soube que me montei, ela chorou. Então foi algo meio estranho, mas que a gente precisava passar juntas para construir essa relação que temos hoje.
O que a Lia tem de diferente do Rahel e o que o Rahel tem da Lia?
A gente é muito parecido, antes tinha uma discrepância em que a Lia era uma pessoa muito mais acesa, confiante e muito mais poderosa. Eu, como Rahel, ainda sou tímido, mas já melhorei bastante nisso.
E acho que a Lia é uma quase melhor amiga do Rahel, foi a forma que achei dentro de mim para me libertar de tantas amarras e de conseguir me ver feliz, me ajudou muito na minha autoestima.
Então hoje em dia sinto que os dois se sentem poderosos, bonitos, possíveis e capazes de fazer o que eles querem fazer, então tem bastante um do outro dentro dos dois universos que vivem dentro de mim.
Você trabalhava com comércio exterior quando começou a fazer shows como Lia Clark. Como foi esse período? Havia incertezas quanto a sua carreira?
Me montar era uma válvula de escape. Vinha para São Paulo e me montava todo fim de semana, mas o meu dinheiro e o meu sustento vinham do meu trabalho convencional, que era o comércio exterior, e grande parte dele ia para a mensalidade da minha faculdade —na época cursava engenharia de produção, tinha bolsa do ProUni, mas não era 100%.
Dentro de mim sempre teve o sonho da carreira artística, mas parecia impossível. Na época, eu também era DJ e o que ganhava tocando não pagava nem a minha montação, era mais por satisfação pessoal. E sempre pensava: será que algum dia isso pode ser realmente o meu ganha pão de segunda à sexta, que eu consiga pagar um aluguel e me sustentar?
E eu via que algumas drags de São Paulo conseguiam viver com esse trabalho, então ficava dentro de mim como um sonho, mas não acreditava, era um tópico paralelo que dizia que seria muito feliz se aquilo acontecesse.
Há algo na sua trajetória que você faria diferente?
Acho que a gente está sempre em transformação interna e externa. Então muita coisa que já fiz não faz muito sentido para mim hoje. E pode ser que o que estou fazendo hoje, mais para frente, também não faça. Eu sou uma pessoa que mudou muito e fico muito feliz porque tudo tem um propósito.
Tem algumas músicas do meu segundo trabalho de estúdio, do álbum "É da Pista", que hoje não gravaria. Na época, gravei só porque queria muito que o álbum ficasse pronto e não tinha outra música. Então fui, gravei, deixei sair o álbum só para lançar logo.
Se fosse hoje em dia, com certeza esperaria um pouco mais, esperaria gostar de todas as faixas, gostar de todo o rumo que a era estava seguindo. Mas precisava passar por aquilo para hoje em dia ter como aprendizado.
Você expõe pouco o seu relacionamento nas redes. Você busca preservar a sua intimidade da vida pública?
Eu sou uma pessoa bem reservada com a minha vida pessoal. Na pandemia ainda tive que me abrir um pouco mais, porque a gente não estava conseguindo fazer show e produzir conteúdo, então o que tinha para produzir era a minha vida pessoal, porque a gente estava preso dentro de um apartamento e era eu e ele [meu namorado].
Então acabei usando dessa plataforma e aproveitando para ter essa conexão com meus fãs, para que eles conhecessem um pouco da minha vida pessoal. Fiz alguns vídeos no YouTube mostrando meu apartamento, apresentando meu namorado, mas realmente não é algo que amo fazer. Não me dá tesão. E não acho que acrescenta tanto no meu trabalho artístico.
Sei que com as redes sociais, as pessoas querem se sentir cada vez mais próximas umas das outras, mas acho que é muito importante a gente ter algo nosso, um lugar que a gente se desligue de tudo e todos e dessa loucura que é carreira. O meu relacionamento é um refúgio onde me sinto confortável e não gosto muito de expor.
Você já falou que não ficou rica mesmo depois da fama. Por quê?
Para uma artista independente é muito difícil ficar rica. A gente vê esse mundo de glamour, de estar nas grandes festas, fazer grandes produções, estar em grandes palcos e se estivesse olhando de fora, realmente ia olhar para a minha carreira e falar: "nossa, mas a Lia então não tem organização financeira, porque ela já fez tanta coisa, como que ela não está rica?".
Mas estando aqui dentro, as coisas são muito diferentes e é até assustador, porque se trata de um sonho de infância. Na minha cabeça era assim: ia ficar famosa, subir nos palcos e ficar rica. Mas a gente esquece que tudo é uma empresa, então o que se ganha se investe, se você não investe, você não é visto. Se você não é visto, não tem show, não tem público, não tem nada.
Então todos esses momentos da minha carreira, que antecedem o que estou vivendo hoje, optei por investir porque queria muito me firmar no cenário. Não queria simplesmente ter uma era de sucesso e chega, acabou para mim. Isso demanda tempo e dinheiro.
Se fosse juntar tudo que já investi até hoje, aí sim estaria rica, mas se fosse juntar tudo, provavelmente não estaria no palco do The Town, não estaria no palco do Rock In Rio, provavelmente muita coisa não estaria acontecendo na minha carreira.
Tenho certeza que valeu a pena.