Investidor 'predador': mulheres relatam assédio no circuito das startups

Lia*, 28, estava em um badalado evento corporativo para empreendedores de startups quando avistou Daniel*. "Desgraçado", pensou, lembrando das vezes em que ele a assediou sexualmente.

Passou os minutos seguintes tentando se desviar dele. Era uma tarefa difícil, porque Lia precisava circular, fazer contatos e, se tudo desse certo, fechar negócios —uma urgência em 2021, passado o pior da pandemia de covid-19.

Uma hora o encontro foi inevitável. "Olha ela. Parece uma cavala", Daniel teria dito, em tom alto o suficiente para que Lia pudesse ouvir —e perceber a malícia que imprimia à palavra "cavala".

"Sabe quando o cara te abraça e coloca o pau pra frente?", indaga, ao relembrar o episódio. "Ele me deu aquela roçada nojenta."

Lia é uma das profissionais mais premiadas do chamado "ecossistema de inovação" do Brasil.

Esse ecossistema reúne gente que quer montar uma startup, quem já montou, os donos do dinheiro (conhecidos como investidores anjos, que bancam o negócio na origem para lucrar depois) e outros trabalhadores do ramo.

Universa ouviu diversos relatos de assédio no meio empreendedor, como propostas de sexo em troca de investimento e um caso de estupro em um evento de inovação.

"Infelizmente, o assédio é uma realidade muito comum", afirma Renata Malheiros, coordenadora nacional do programa Sebrae Delas.

Renata conta que profissionais que prestavam serviço ao Sebrae já foram acusados de assédio em eventos. Após a apuração interna, eles foram descredenciados da entidade, uma das mais importantes do setor.

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O Sebrae orienta vítimas de assédio a procurar os órgãos competentes para formalizar as denúncias contra os agressores —Ministério Público e delegacias da mulher.

Carta contra o assédio

Também há relatos de assédio sexual durante eventos da Abstartups (Associação Brasileira das Startups).

Em março, foi publicada uma carta aberta sobre o assunto à Abstartups no site de petições Avaaz. Em setembro, tinha mais de 1.100 assinaturas.

"Não podemos mais tolerar a perpetuação dessas práticas em nossa comunidade", diz o documento.

Em resposta, a Abstartups criou um formulário para que empresas e voluntários "possam pensar em iniciativas e contribuir em ações específicas contra esse tipo de violência".

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Sobre as acusações de assédio, a Abstartups informou em nota que "repudia todos os tipos de assédio", mas "não tem os poderes de julgamento ou fiscalizatórios".

Currículo mediante ménage

Passados três anos, Lia guarda prints das conversas de WhatsApp em que Daniel a assediou pela primeira vez —para o caso de mudar de ideia e decidir processá-lo.

Naquela ocasião, ela procurava trabalho em uma das empresas em que ele atuava.

Daniel é consultor de grandes corporações. É hierarquicamente superior a Lia, influente o bastante para recomendar —ou bloquear— a contratação de profissionais no meio.

Em janeiro de 2020, Lia escreveu para ele: "Estou em busca de novas oportunidades, de algo que continue fazendo meus olhos brilharem e meu coração acelerar. Caso saiba de alguma oportunidade, você pode me mostrar ou, quem sabe, me indicar?"

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"Uau", ele respondeu. "Quero tanto poder te trazer... Você iria voar conosco".

De repente, mudou de assunto: "Minha esposa te ama", seguido de emoji cercado de corações. "Isso me faz pensar em coisas. Mas ela é muito quadradinha e não aceitaria nem falar no assunto", complementou, dessa vez com um emoji de rosto com língua à mostra.

Antes que Lia pudesse responder à insinuação sobre um ménage à trois enquanto ela procurava trabalho, Daniel prosseguiu: "Quase apaguei essa mensagem por achar que estava passando dos limites nos comentários indecentes", repetindo o emoji com a língua. "Mas quero ser franco e aberto com você sobre meus pensamentos."

Vi que ele não queria me contratar, queria me comer. Congelei. Lia

"Não sabia como agir. Ele é um cara poderoso no ambiente de inovação. Eu precisava de trabalho. Constrangida, dei uma resposta da qual me arrependo", conta. A resposta foi: "A vida é para ser vivida. Temos que ser sinceros com o que a gente pensa. Sinta-se aberto para o diálogo".

"Você tem um currículo atualizado?", ele devolveu.

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A tática da desidratação

Comportamentos como o de Lia (desconversar gentilmente sobre insinuações sexuais) são comuns no ecossistema de startups e inovação, um ambiente de trabalho mais masculino, branco e heterossexual do que a média do mercado.

Conforme levantamento da Abstartups, 72,3% dos fundadores de startups são homens. Entre os fundadores, incluindo mulheres (19,7%), 92% são heterossexuais e 72%, brancos. Do total, 87,2% têm entre 29 e 58 anos. Os dados são de 2022. A entidade estima que o Brasil tenha 14 mil startups em atividade.

Três homens são famosos no ambiente das startups —tanto pelo poder que possuem quanto pelos assédios. A identidade deles será preservada porque as vítimas preferiram não levar as denúncias a público, por temerem represálias, como perda de oportunidades de trabalho.

Daniel, o primeiro, é conhecido por casos de assédio moral e sexual. Marcelo*, por investidas sexuais, incluindo um caso de estupro —nos bastidores, ele tem o apelido de "predador". João*, um investidor anjo e palestrante de motivação e liderança, é notório pelo assédio moral.

O advogado Marcus Maida conta que recebeu 70 denúncias de assédio e, até agora, não conseguiu convencer nenhuma das denunciantes a levar os casos à polícia —o que inclui uma alegação de estupro e duas de importunação sexual.

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Elas têm medo de ser rotuladas e perder trabalho. Marcus Maida, advogado

Ele também as orientou a procurar ajuda psicológica para lidar com os traumas.

Como as vítimas têm evitado a polícia, a estratégia adotada por quem atua à frente do combate ao assédio é "desidratar" os três assediadores mais notórios, afirma uma empresária.

Num evento recente, por exemplo, João foi desconvidado faltando dez minutos para a apresentação dele.

Uma ex-colaboradora de João relata que, durante quatro anos, trabalhou de domingo a domingo com ele, sem contrato de trabalho —se reclamasse, era ameaçada com corte na remuneração. Ela conta que ele também criticava a aparência física dela, em público.

O 'machismo' do ecossistema

A empresária Carolina Gilberti Chaves atua no ecossistema de inovação apoiando startups lideradas por mulheres.

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Carolina Chaves: ambiente hostil para mulheres
Carolina Chaves: ambiente hostil para mulheres Imagem: Divulgação

Nos eventos dos quais participa, "100% dos componentes das mesas e dos painéis" são homens, afirma.

O resultado disso, diz, é um ambiente mais hostil para as mulheres —que fica evidente em situações em que elas recebem dos investidores cobranças das quais os homens escapam, como a capacidade de gerir um negócio tendo filhos pequenos.

Uma das mostras do "machismo" que impera no ecossistema de inovação, cita o mentor Vinny Machado, é o fato de ter sido necessário que ele (um homem) fosse a público para denunciar o assédio no ambiente para que o tema ganhasse visibilidade.

Vinny Machado foi procurado por vítimas de assédio
Vinny Machado foi procurado por vítimas de assédio Imagem: Divulgação

Vinny iniciou o movimento "Aqui não", que resultou na carta à Abstartups, após receber dezenas de relatos de assédio em mensagens privadas pelas redes sociais e em encontros presenciais.

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'Em que hotel você está hospedada?'

De tanto ser vítima e testemunha de assédio, a empresária Ana Addobbati fundou uma startup para combater o problema, disseminando boas práticas de conduta em eventos e empresas.

Ser CEO de uma empresa intitulada Livre de Assédio blinda Ana de propostas indecentes —exceto quando o assediador desconhece o trabalho dela.

Foi o que aconteceu, ela conta, durante um jantar após um evento. Ao chegar ao restaurante, sentou-se ao lado de um investidor, a quem foi apresentada rapidamente.

"Você sabe que tenho acesso a todo tipo de investimento", disse o homem, afirmando ser amigo de ministros de Estado. "Em que hotel você está hospedada?", perguntou.

Ana pediu licença para ir ao banheiro e, ao retornar para a mesa, comemorou ao notar que um amigo ocupara seu lugar, colocando-se entre ela e o investidor.

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Em outra ocasião, durante uma feira de negócios em Lisboa, recebeu a mesma proposta (tratar dos trâmites do apoio financeiro no quarto de um hotel) de um investidor em potencial.

Ana Addobbati: investidor sugeriu discutir negócios no quarto
Ana Addobbati: investidor sugeriu discutir negócios no quarto Imagem: Divulgação

Ela não denunciou os assediadores. Recentemente, foi informada da existência de uma lista, em Florianópolis, com nomes de mulheres que já se queixaram de assédio —não em uma delegacia, mas em ambientes privados. Em vez de incentivar as vítimas a levar a questão para a Justiça, diz, a solução tem sido encontrar trabalho para elas longe dos assediadores.

"Vítimas têm medo de ser excluídas dos espaços de trabalho. E, infelizmente, é o que acontece. Esse ambiente é machista e misógino", afirma Ana Fontes, presidente da RME, a Rede de Mulheres Empreendedoras.

Palestrante 'predador'

O caso mais conhecido de exclusão é, também, o mais dramático.

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Durante um evento de inovação, uma jovem empreendedora teria ficado fascinada com a atenção recebida de um facilitador, o palestrante Marcelo.

Facilitadores são os líderes das equipes de trabalho. Nesses eventos, que às vezes duram dias e ocorrem em hotéis, palestrantes, facilitadores e mentores podem assumir ares de gurus.

Ao pedir conselhos a Marcelo ela teria sido convencida a encontrá-lo no quarto, ocasião em que teria sido estuprada.

Na época, a jovem chegou a fazer um post no Facebook relatando o ocorrido. Tida por exagerada e mentirosa, foi "banida do ecossistema", expressão repetida por diversas fontes ouvidas por Universa. As portas do mercado fecharam-se para ela.

Sem trabalho e deprimida, apagou o post, largou o trabalho e migrou para outra área. Hoje, recusa-se a tocar no assunto.

Uma paradinha no motel

"Garotas muito novas, recém-ingressas no ecossistema, ficam entusiasmadas quando um cara desses quer mentorá-las", afirma a jornalista Monique Fernandes, ex-dona de uma startup.

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Ela tentou, sem sucesso, convencer a suposta vítima do estupro a narrar a história para um livro que prepara sobre o assunto. Na obra, com publicação prevista para 2024, a jornalista quer contar os bastidores do ecossistema.

Monique Fernandes prepara livro sobre assédio no ecossistema
Monique Fernandes prepara livro sobre assédio no ecossistema Imagem: Divulgação

Dona de uma empresa de assessoria especializada no atendimento a startups, Monique abandonou o negócio em 2017. Ela relata ter enfrentado uma "crise existencial" após cinco anos de trabalho na área.

Quando descobri o que acontecia no mercado, vi que estava transformando em herói quem não era exemplo para nada. Monique Fernandes

Um desses "heróis", relata, assediou-a após uma entrevista nos estúdios da TV Globo, no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro.

O empresário, de acordo com o relato da jornalista, deu uma carona para ela e, ao passar perto do motel Panda, já no bairro do Botafogo, perguntou se poderia fazer uma parada lá.

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"Era meu cliente. Respirei fundo e disse que não dava porque tinha que trabalhar", conta. "Depois do ocorrido, evitava ficar sozinha com ele. Quando ele cancelou o contrato, foi um alívio."

Monique tornou-se persona non grata ao postar no Linkedlin, em plena pandemia, um artigo em que denunciava casos de violência sexual nesse ecossistema.

"E não estou falando de cantada barata, estou falando de investidor que se utiliza da posição de vantagem e condiciona o sexo ao investimento na startup. Estou falando de mentor assediando abertamente participantes em evento", escreveu.

"Estou falando de caso de estupro em que boa parte do mercado sabe o que, quando, onde e quem são o estuprador e a vítima, mas ninguém fez absolutamente nada", prosseguiu.

Hoje, ela presta assessoria de imprensa a um político. "Tive uma queda considerável no meu padrão de vida", diz. "Mas compensou".

*Os nomes foram trocados para preservar a identidade dos envolvidos

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