"A Dira ativista sempre existiu", afirma Dira Paes

Dira Paes é uma atriz que vai da comédia ao drama no cinema, na TV ou no teatro. Em breve, poderá ser vista como a divertida Psilene, de "Ó Pai, Ó 2", que tem estreia prevista para em cartaz nas salas de cinema desde o dia 15 de novembro. Seu trabalho mais recente disponível ao público, porém, é a personagem que dá título ao filme "Pureza" (2022). O longa é baseado na história real da ativista pelos direitos humanos e combate ao trabalho escravo, Pureza Lopes Loyola, e está disponível em plataformas de streaming.

O papel rendeu a ela o troféu Grande Otelo de Melhor Atriz, no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, em agosto. Além dele, Dira acaba de receber a homenagem no Festival Maranhão na Tela.

"A Dira ativista sempre existiu. Acredito que [dar visibilidade a uma causa social] conscientemente é contemplar também o seu papel de cidadão", afirmou em entrevista a Universa.

Dira Paes apresentou o Prêmio Inspiradoras 2023
Dira Paes apresentou o Prêmio Inspiradoras 2023 Imagem: Mariana Pekin/UOL

Na última terça (19), a atriz fez reverberar uma causa urgente no palco da Casa Natura Musical. Ela estava lá para comandar a festa de revelação das vencedoras do Prêmio Inspiradoras 2023. Logo depois de entregar o troféu hors concours à líder indígena Alessandra Korap e de ouvir o discurso da homenageada, Dira puxou um coro contra o marco temporal.

O Prêmio Inspiradoras 2023 é uma parceria entre Universa, a plataforma feminina do UOL, e o Instituto Avon. Accor providenciou a hospedagem das finalistas em São Paulo e Uber, o transporte. Dias antes de participar do evento, Dira concedeu a entrevista a seguir a Universa.

Universa: Você acaba de receber mais um grande reconhecimento de seu trabalho, sendo homenageada no Festival Maranhão na Tela, pelo papel em Pureza. Pode contar um pouco sobre essa experiência?

Dira: Foi muito emocionante, principalmente pela presença de Pureza Lopes Loyola, que é maranhense. Ela é um ícone do abolicionismo do trabalho análogo à escravidão contemporâneo, uma mulher que foi além do que pretendia. Ela saiu em busca do seu filho e acabou se tornando a primeira pessoa a fazer imagens de trabalho rural escravo contemporâneo. (Graças às denúncias de Pureza, o Ministério do Trabalho e Emprego criou, em 1995, um órgão governamental para fiscalizar situações de trabalho análogo à escravidão). Estar ao lado dela, ver sua história no Maranhão na Tela, na sua própria terra, foi um momento especial em nossas vidas. Me sinto duplamente contemplada. Primeiro porque esse papel foi um trabalho de entrega gigantesco. Ao mesmo tempo, tem o valor social que o filme traz. Unir essas duas pontas é como se fosse o ideal do trabalho como atriz.

No Maranhão na Tela você participou de um bate-papo ao lado dela. Já a conhecia pessoalmente ou foi o primeiro encontro?

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Eu conheci Pureza da vez anterior em que estive no Maranhão, em 2018. Fomos até Bacabal (cidade a 85 quilômetros de São Luís, onde Pureza vive) para eu encontrá-la antes do filme. Pude fazer perguntas e ela respondeu a todas. Foi algo como beber na fonte antes das filmagens. Pude entender a Pureza dentro do universo da sua casa, do seu cotidiano, com o filho que resgatou agora morando numa casa nos fundos da mãe. Parecia que, enquanto narrava sua vida, estava contando uma ficção que eu faria. Foi muito precioso para a construção do filme.

O papel de Pureza lhe rendeu, inclusive, o troféu Grande Otelo de Melhor Atriz no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, em agosto.

Tive a sorte de ganhar esse prêmio antes (pela personagem Rita, em Veneza, no ano passado, e Rosa, em À Beira do Caminho, em 2013) e já me sentia contemplada de estar entre as indicadas mais uma vez. Creio que foi o ciclo Pureza se revelando novamente e mostrando sua potência. Foi um momento especial porque eu realmente não achei que fosse ganhar. Mas quando anunciaram, eu fiquei muito feliz e não consegui esconder isso.

Você sempre aproveitou o fato de ser uma atriz reconhecida para dar visibilidade a causas importantes. Você acha que o artista deve ter esse papel?

Mesmo quando o artista não quer dar visibilidade a um tema, de alguma maneira ele acaba dando. Acredito que fazer isso conscientemente é contemplar também o seu papel de cidadão. São coisas complementares e é bem mais provável que alguém conhecido consiga dar visibilidade a uma causa humanista do que uma pessoa que não tem esse apelo. Emprestar um pouco do reconhecimento público, da imagem pode ajudar a desenvolver e até fazer com que as pessoas entendam uma ideia que precisa de difusão, de ser posta em ação. Para o terceiro setor, pensar é necessário, mas agir é fundamental. Nos tempos digitais atuais é tão mais simples ser um ator transformador de realidades que dependem de um olhar mais generoso. Essa é uma função sem a qual não consigo me entender. Não dá para não participar, para não ser ativa, não dá para ter passividade frente à miséria, à fome, ao descanso, à orfandade de pai e mãe. O seu lugar pode até ser privilegiado, mas se o lugar do outro não for, você vai viver as consequências dessa desigualdade social.

Qual a origem desse seu lado ativista?

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A Dira ativista sempre existiu. A minha mãe era uma assistente social nata, mas penso que carrego uma consciência de mulher da Amazônia. Não dá para ser do Pará sem lutar por representatividade política, social. É preciso entender nossos valores. Venho de uma época em que ser ativista era ser ecochato. E agora estamos sentindo na pele as consequências de quem virava o rosto para os ecochatos. Sinto muito orgulho de ter sido uma pessoa com um olhar futurista. Tenho 54 anos, estou falando de uma consciência que carrego há muitos anos. Me lembro que desde antes de ser atriz já tinha um olhar preocupado com a Amazônia e os direitos de seus povos originários. A importância da minha representatividade como mulher amazônida, depois de me tornar atriz, só foi amplificada. Hoje não entendo a vida sem esse tipo de atividade que seja compensatória para o maior número de pessoas possível.

Como uma das diretoras do Movimento Humanos por Direitos, acredita que é importante ter movimentos e entidades formalizados para a luta pelos direitos humanos?

Com outros colegas que têm a mesma afinidade que eu, lançamos o Movimento em 2003. Estamos completando 20 anos de um trabalho que é justamente voltado para dar visibilidade ao combate ao trabalho escravo, à degradação do meio ambiente, à luta pelos direitos das crianças e dos adolescentes e dos indígenas e quilombolas. A gente vê que tudo se correlaciona, diz respeito à terra, ao meio ambiente, ao respeito às regras civilizatórias que balizam os direitos humanos brasileiros, o estatuto da criança e do adolescente. O Movimento foi baseado exatamente na necessidade de ampliar e orientar aqueles que lutam solitariamente por direitos que dizem respeito a todos. Isso inclui até mesmo pessoas ameaçadas de morte. No campo, muitos líderes são silenciados e é onde está nosso maior foco. Geralmente, no campo, um líder é silenciado pelas distâncias, pelo poder do agronegócio e pela falta de coerência com os pequenos produtores. Nesses casos, tentamos dar mais visibilidade às suas causas.

Você também se manifesta quando o assunto é cultura e tem falado sobre a necessidade da volta da adoção da cota de telas para produção nacional no cinema. A medida anterior, que fixava uma cota de conteúdo nacional nas sessões de cinema, venceu em 2021, quando a venda de ingressos para filmes brasileiros caiu de 13% para 1,8%. E agora em setembro expira também a cota de programação de produções nacionais em TV por assinatura. Uma nova lei está tramitando no Congresso. É preciso defender a chamada cota de tela?

Nós queremos cota de tela, nós queremos direito autoral. Isso não é favor. Essas são as hashtags do momento. A gente precisa se reconhecer como um mundo imagético, um mundo em que a imagem está acessível a cada indivíduo que tenha um celular na mão. Ele consegue reproduzir e produzir imagens com muita facilidade. Esse é um lugar que nós, artistas que trabalhamos com a utilização da nossa voz, do nosso talento, da nossa imagem, precisamos entender a nossa realidade nesse ambiente digital. O Brasil é um dos maiores mercados internacionais que existem, o terceiro em número de assinaturas no streaming. Por isso, nós precisamos dar um pontapé inicial nessa discussão, como Chiquinha Gonzaga fez 100 anos atrás, quando se tornou uma das pioneiras no movimento de defesa dos direitos autorais no país.

Depois de construir uma carreira como atriz no cinema, na TV e no teatro, você se lança agora como diretora de cinema. O seu primeiro filme, Pasárgada, está em fase de finalização. Era um desejo estar por trás da tela?

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Você usou a palavra certa. Fui despertada pelo desejo de experimentar. Me deu vontade de degustar cada etapa de um fazer cinematográfico, desde a criação do roteiro até o momento em que estou agora, que é de finalização, quando é feita a entrega de um corte pro editor, para o mixador de som. Tenho crescido bastante, é uma experiência que me faz expandir. A atriz foi muito beneficiada com esse trabalho. A diretora, a gente ainda vai ver.

Você também é roteirista do filme, protagonista e produtora executiva. Com tantos papéis em uma só produção, o que diria sobre protagonismo feminino no cinema e nas artes em geral?

O protagonismo feminino nunca mais vai dar ré, ao contrário, vai acelerar muitos processos. Entre esses, está a ascensão à liderança, aos cargos de chefia. No meu caso, ocupei vários papéis mais por questões de viabilização do que por monopólio, mas tive a preocupação de ter outras mulheres. E fico feliz de minha produtora ser também uma mulher, a chefe de caracterização ser uma mulher. Conseguimos ter essa equidade de gênero que a gente tanto busca e de raça também, tentando se adequar aos valores dos novos tempos. Pasárgada foi fruto dessa inquietação e me sinto feliz com o resultado..

No filme, você também trabalhou com o seu marido, Pablo Baião, que é diretor de fotografia. Foi a primeira experiência de vocês trabalhando juntos?

A gente se conheceu no cinema, mas Pasárgada foi o primeiro trabalho produzido por nós dois. A experiência foi confusa porque eram muitos papéis se confundindo. Pablo foi meu marido, meu eco, era com ele que eu tinha um termômetro das ideias que passavam pela minha cabeça. E o que propus para nós dois foi que quebrássemos algumas linguagens, alguns aspectos que já sabíamos que as pessoas gostavam na gente. Era importante ter o desafio do viés. Depois, quando assistirem o filme, vocês vão entender a ideia de pisar em lugares que a gente não costumava pisar. Às vezes, a gente tem que se propor essas mudanças. Quando elas não vêm, a gente mesmo busca realizá-las.

Temos ouvido bastante sobre etarismo, atrizes reclamando da perda de papéis para uma geração mais nova. Isso é algo que te afeta de alguma maneira?

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Sinceramente, essa questão do etarismo é puro preconceito. E ponto. Vejo o mundo de uma maneira tão diferenciada. Enquanto a maioria das pessoas se preocupam com a narrativa da história do herói e lançam sobre esse herói um olhar de juventude, costumo dizer algo que ouvi em algum lugar e adotei para mim: sou jovem há muito mais tempo. É esse conceito que levo. Junto a isso, é sabedoria, é um olhar de autenticidade, uma cabeça pensante. Nesse sentido, não devemos mais endossar, enquanto mulheres maduras, esse preconceito. E os homens maduros também devem ser incluídos nessas pautas - sou mãe de dois garotos, não podemos ser excludentes, é preciso levar essa consciência também para os homens. Temos de quebrar esses estigmas. De alguma maneira, já estamos atentas de que podemos ser o que quisermos, na hora em que quisermos. As pessoas vão ter que aguentar isso.

Para terminar, o que há de novo por vir?

Além da expectativa pela estreia de "Ó Paí, ó", estou aqui torcendo para que Pasárgada consiga entrar nos festivais internacionais e que, em breve, a gente possa mostrá-lo por aqui para, assim, perceber qual será a trajetória dele. E a minha também. É uma porta que se abre e quando algo se expande, tem que ficar aberto para o futuro, para o que virá.

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