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Prêmio Inspiradoras: 'A cidade vai aquecer cada vez mais', diz homenageada

Giuliana Bergamo

Colaboração para Universa

21/09/2023 04h00

No último dia do inverno, a terça (19), enquanto paulistanos sofriam com o calorão muito além do normal, a líder indígena Alessandra Korap fez um alerta: "A cidade vai aquecer cada vez mais". A fala fez parte de seu discurso no palco da Casa Natura Musical, depois de receber a mais alta honraria do Prêmio Inspiradoras 2023, a homenagem hors concours. A premiação é uma parceria entre Universa, a plataforma feminina do UOL, e o Instituto Avon. Accor providenciou a hospedagem das finalistas em São Paulo e Uber, o transporte.

Além de premiar uma entre três finalistas de sete diferentes categorias, cada edição é oferecida a uma mulher que esteja à frente de uma causa urgente. Neste ano, a premiação foi dedicada à Justiça Climática, área na qual as mulheres indígenas têm um protagonismo inquestionável. Alessandra, especificamente, vem liderando uma luta corajosa. Ela, que é de etnia munduruku, enfrenta garimpeiros e mineradoras para proteger as 13 aldeias do médio Tapajós, no Pará, de invasões, desmatamento e, sobretudo, contaminação da água por mercúrio.

Há anos, a população local já sabia que algo não ia bem. Muitas pessoas, principalmente crianças, adoeciam ou apresentavam malformações. Mas, depois que exames realizados pela Fiocruz comprovaram que mais da metade da população estava contaminada, a história mudou de rumo.

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"Nós, mulheres, falamos então: a gente não vai desistir. Vamos lutar pela vida, a vida dos rios, dos peixes, da floresta e a nossa própria vida. E a vida de quem mora na cidade também, porque o peixe não fica só em um lugar."

O enfrentamento ostensivo às investidas de mineradoras incluiu organização de assembleias com as lideranças indígenas, muitas idas a Brasília, entre outras manifestações públicas para chamar atenção para a gravidade do assunto. Tanta movimentação inibiu a empresa Anglo American e, em seguida, a Vale, que pretendiam explorar minério na região e acabaram desistindo.

A consistência do embate também chamou atenção internacional. Alessandra passou a ser convidada a participar de eventos na Europam Berlim, discursou para mais de 270 mil pessoas. Esteve ainda em Glasgow, na Escócia, para a COP26. Este ano, veio um reconhecimento ainda maior. Ela recebeu o Prêmio Goldman, considerado o "Nobel verde". Além dela, outros três brasileiros já receberam a honraria. Carlos Alberto Ricardo (1992), Marina Silva (1996), a única mulher até então, e Tarcísio Feitosa da Silva (2006).

Atualmente Alessandra se divide entre uma residência em Santarém, no Pará, onde estuda direito, outra em Itaituba, também no Pará, onde fica sua aldeia, e o mundo, viajando por uma missão: defender a floresta, os povos indígenas e todos nós, que dependemos deles para sustentar o caos da cidade.

A entrevista a seguir foi concedida em parte por videoconferência, dias antes do Prêmio Inspiradoras, e parte presencialmente, em São Paulo.

Alessandra Korap é homenageada no Prêmio Inspiradoras Imagem: Mariana Pekin/UOL

Universa: Quando você se mudou para Santarém?

Alessandra: Foi em 2019, mas, na realidade, eu nunca fiquei firme em Santarém, sempre fui para a aldeia. Agora resolvi dedicar esse ano de 2023 para estudar mesmo. Porque a gente não teve tempo nesses quatro últimos anos: ou você ficava na sala de aula estudando, ou você ia para a luta, para defender o território. E eu já tinha decidido ir pra luta junto com o meu povo.

E como você despertou para a luta?

A gente já tem vários problemas dentro do território por conta do garimpo. E dentro também. Há muitos anos tem aquela briga para legalizar o garimpo. E a gente tem uma outra briga para demarcar o território. Não podemos deixar os garimpeiros tomarem conta. A gente sempre viu o impacto do garimpo, mas não tinha ideia de que ele era muito maior. Dava para ver a água suja, as crianças adoecendo? Também tinha muito lixo, bastante combustível subindo rios, draga sendo construída. Percebemos também que pessoas vinham de fora, para fazer tráfico. Traziam armas e drogas para dentro dos territórios. Mas, então, um amigo nosso indigenista adoeceu por conta do mercúrio. Isso fez a gente abrir nossos olhos. Aí falamos com a Fiocruz, que fez análises dos nossos cabelos. Os resultados mostraram que sessenta por cento das pessoas estavam contaminadas. A gente já sabia que estava doente, mas até então não havia prova. E, com os homens brancos, precisa ter provas, fazer exames?

O que acontecia antes de vocês terem os exames?

O município sempre negou, né? Falavam que a doença era normal, que as pessoas adoecem. Mas a gente nunca achou normal, principalmente por causa das crianças e dos problemas que foram aumentando. As crianças já nascem com problemas. Não era normal! Uma aldeia que fica bem distante da cidade, na floresta mesmo, não era pra ter gente em cadeira de rodas. Era pra ter tudo saudável. Se os peixes são de caça, como é que as pessoas estavam adoecendo? A gente tinha essa curiosidade.

Como vocês fizeram o caso chegar à Fiocruz?

Em 2016, se não me engano, fizemos uma assembleia e mandamos uma carta para a Fiocruz. Em 2018, eles vieram ao nosso município, Itaituba (PA). Eram vários médicos que começaram o processo de pesquisa.

O que exatamente vocês fizeram depois de receberem os resultados dos exames?

A gente fez uma reunião chamando todo mundo, até os parentes do alto Tapajós. O médico, então, foi explicando, tirando as dúvidas que surgiram. Foi bem preocupante porque a maioria das mulheres estava contaminada com mercúrio. Ou seja, as mulheres que estavam grávidas e que amamentavam também estavam contaminando os seus filhos. Como nós íamos pensar no futuro se nosso próprio leite estava contaminado? Então foi bem assustador para as mulheres, mas não só para nós. Os homens também, porque eles que pescam, trazem alimentos para a esposa, os filhos e, de repente, os peixes estavam muito mais contaminados.

E foi então que vocês decidiram ir à luta?

Isso. Nós, mulheres, falamos então: a gente não vai desistir. Vamos lutar pela vida, a vida dos rios, dos peixes, da floresta e a nossa própria vida. E a vida de quem mora na cidade também, porque o peixe não fica só em um lugar. Ele sobe e desce o rio, entra nos igarapés, sai dos igarapés e vai para o rio. O peixe se movimenta muito, igual pássaro. Os animais que estão na floresta não têm limite. Como antigamente nós éramos, nós não tínhamos limite. Hoje nós estamos muito limitados. Então é bem preocupante. A gente fica imaginando como é que o homem branco consegue destruir o bem da vida para eles mesmos. Infelizmente a gente percebe que tudo isso envolve lucro, dinheiro, destruição, desmatamento da floresta.

Antes deste episódio dos exames que comprovaram a contaminação por mercúrio na aldeia, você já estava engajada na luta contra o garimpo, não?

Sim. Comecei mais ou menos em 2015. Até então, eu era professora e não podia sair da aldeia. Então fazia coisas aqui. Mas fui percebendo o avanço do garimpo e dos portos para transportar soja e guardar na beira do rio. E isso estava afetando a minha aldeia. E eu sempre me perguntava: qual é o meu papel? Ser mãe? Ser professora? Estar aqui, na aldeia? Eu não era liderança, era apenas uma pessoa curiosa. Eu participava de reuniões, mas muitas vezes era barrada. Minha mãe brigava: olha, você não pode participar das reuniões porque você é mulher. Quem me incentivou muito foi a Maria Leusa, uma das grandes guerreiras do alto Tapajós, que também enfrenta muitos garimpeiros. Aí eu comecei a falar bastante. Muitos caciques começaram a me observar, a me chamar para reuniões e me chamaram para ser chefe das guerreiras do médio Tapajós e, depois, para entrar na associação. Fui tesoureira, coordenadora e, por último, presidente.

Foi a militância que te levou à faculdade de direito, onde hoje você é estudante?

Sim. O direito é uma arma, uma ferramenta para, por exemplo, estar no Supremo Tribunal Federal e mostrar o que está acontecendo com o nosso povo, o que vai acontecer com nosso território. O meu sonho é isso? Não só estar no chão batendo, brigando, mas também na frente dos ministros e dos senadores. Hoje nós temos vários advogados indígenas. Para falar a verdade, eu vejo o direito como uma árvore muito grande.

Alessandra Korap é homenageada no Prêmio Inspiradoras Imagem: Mariana Pekin/UOL

Pode explicar melhor?

A gente que está no movimento conhece nossos direitos minimamente. Quando a gente vai estudar, a gente não estuda aquela árvore, a gente estuda tudo: as folhas, os caules, raízes e ali tem toda a conexão. Tem muitas siglas, tem muitos números, tem muitos artigos, parágrafos e você tem que decorar. Eu disse, nossa, como é que eu vou conseguir estudar assim? Tem assunto que não tem nada a ver comigo e muitas vezes me assusta. Mas eu acho importante aprender porque, assim, a gente pode entender os modos de vida deles [dos brancos] também, o modo de pensar deles.

Você tem sofrido muitos ataques por causa da sua luta. Pode contar um pouco sobre eles?

A primeira vez foi em 2019, eu tinha ido para Brasília com outras lideranças, para fazer várias denúncias. Quando cheguei, vi que tinham entrado na minha casa. Levaram meu cartão de memória, minha bolsa com HDs, documentos e uma TV. Só não levaram a câmera. Isso me assustou porque nenhum ladrão deixaria algo de valor para trás. A segunda vez foi em 2021, quando levaram a memória das câmeras de vigilância que eu tinha dentro da minha casa. Levaram isso, uma pasta e 4 mil reais, que eram para assembleia que faríamos. Mas teve um episódio que me marcou muito. Foi quando atacaram a Aldeia Fazenda Tapajós, da Maria Leusa, e colocaram fogo. Tentaram matá-la, tentaram matar os filhos dela, cortaram a internet, queimaram, foi horrível. Isso está no filme "Amazônia, A nova Minamata?"

É uma reconstituição de cena ou são imagens reais?

Reais. Uma pessoa que estava com ela conseguiu fugir, se esconder e filmar. Tem vários áudios. Só postaram um no filme, mas tinham vários em que ela mandou também para mim falando que precisava de ajuda, pedindo socorro, porque os garimpeiros tinham chegado lá na frente da casa dela. Só que, então, ela parou e sumiu. Eu fiquei tão desesperada querendo ir até lá. Mas eu estava a 400 quilômetros de uma estrada horrível, a Transamazônica. Toda vez que eu assisto a este filme, eu choro nesta cena. E em muitas outras também. As pessoas reclamam muito da vida. Eu digo: gente, vocês não passaram o que nós passamos! Vocês não vivem nas nossas peles! Vocês moram num prédio, a gente precisa defender um rio, defender nosso território, nossos filhos, nossos caciques, nossas mulheres, nossos jovens. Hoje mesmo está acontecendo a marcha das mulheres. Elas saem do próprio território para lutar, para se defender. Levam seus filhos, ficam num barracão, acampado, passando frio, sol muito quente.

Você tem a consciência de que, quando você está lutando pelo rio, pela floresta, pelos animais, não está lutando só por você e seu povo, mas também por nós, que vivemos na cidade?

Eu fico pensando como é que as pessoas não entendem qual é a nossa luta? Como que as pessoas ainda não entenderam? Qual a importância da floresta, do cerrado, dos biomas? Onde eu moro, por mais que seja na Amazônia, quando existe garimpo, não tem água limpa, você jamais vai beber água limpa. A gente é largada pelo Estado. O Estado vai dizer pra nós: vocês precisam de escola? Vocês precisam de água? Vocês querem saúde? A gente tem que correr atrás, ir até Brasília. Eu não vi os meus filhos crescer. Hoje eles têm 15 e 17 anos. Quando olho para os meus filhos fazendo café, fazendo almoço, limpando a casa, eu penso que não ensinei porque eu não tive tempo. Meu tempo foi usado para defender o território, para que um dia casem, tenham mulheres, filhos, um lugar para viver, para pescar, caçar e ensinar aos próprios filhos o que eu não tive tempo de ensinar a eles. Eu só tive tempo de proteger o que é deles. Mas não só deles. Porque essa nossa luta não é só para nós. É para São Paulo, por exemplo. A água não nasce da torneira, ela vem de algum lugar. As usinas que são construídas e muitas vezes secam os rios. Então você tem que parar, não pode gastar muita água. Quando São Paulo ficou escuro, todo mundo olhou pra Amazônia e viu qual é a importância da floresta.

Na sua opinião, qual é o papel das mulheres na luta por justiça climática?

O papel das mulheres principalmente é a vida porque as mulheres não lutam só por elas, lutamos por todos. Nós mulheres temos uma sabedoria muito grande, que é o nascimento. Muitas vezes os homens se assustam quando veem uma mulher pelada, mandam logo se cobrir. Mas aí acabam estuprando, violentando, batendo, mas o nascimento, que a gente tem em nosso corpo, eles querem encobrir. É igual à floresta. Ela nasce, ela vai dar os frutos. E, se você cortar, não dá mais o fruto. E nós, mulheres, choramos, mas nos levantamos para recomeçar tudo de novo. E conseguimos. Por mais que a gente esteja doente, por mais que estejam contaminando nosso leite com mercúrio, contaminando nossos filhos, a gente sempre olha uma pra outra dizendo que a gente vai lutar, a gente vai continuar gritando, porque nós somos o futuro e somos o presente. Sabe, eu vejo um cemitério de brancos, por exemplo. Será que alguém ia gostar se nós fizéssemos um prédio ali? Ia ter uma revolução! Só que com a gente é diferente. Eles destróem, acabam com tudo, parece que não têm amor ao próximo. E fazem isso enquanto nós estamos gritando não. Nosso local é sagrado, é onde estão nossos espíritos, nossos pajés estão pedindo socorro, nossos pais estão pedindo socorro! Não pode matar, não pode destruir. E, muitas vezes, não é a bala que mata. Muitas vezes é caneta, como está acontecendo lá em Brasília. O Senado não gosta dos povos indígenas. Os senadores da era Bolsonaro ainda estão lá.

Você disse que lutou incansavelmente nos quatro anos de governo Bolsonaro, mas agora temos um novo governo em curso há quase nove meses. Que é a sua avaliação deste novo período? As coisas mudaram de fato? Você tem mais esperança?

Eu durmo melhor agora. Hoje eu estou dormindo mais tranquila. Mas, antes, ninguém dormia. A gente tinha pesadelos, os caciques ficavam doentes. Hoje com o governo Lula até melhorou. Ele demarcou terra indígena, deu ministérios para os povos indígenas, mas não depende só dele, depende do Senado. O Lula parece estar sozinho, eu percebo isso de longe. Ele tenta fazer algo e, aí, o senado cria lei para barrar. Como eles fizeram com com o ministério dos povos indígenas, que quase foi extinto. Parece que está todo mundo anestesiado depois da entrada do Lula. Só que ele não é toda a solução. Ele precisa de uma pressão, de força. E só os povos indígenas estão fazendo manifestações contra esses projetos de lei, como a PL 490 que virou PL 2903. Não adianta ter o ministério dos povos indígenas, não adianta demarcação se o Senado está contra a gente, contra o governo federal.

Quais suas expectativas para a votação do marco temporal?

A população em geral precisa se manifestar. Eu não vejo manifestação dos estudantes contra o marco temporal, por exemplo. Eu não vejo as pessoas que lutam pelo meio ambiente lutar contra o marco temporal, contra a PL 2903, os projetos de lei da destruição, isso está acontecendo em Brasília. E a tese do Alexandre de Morais é muito ruim, porque acaba defendendo a indenização dos ruralistas.

Você ganhou essa grande premiação no começo do ano, o Prêmio Goldman, por ter conseguido fazer com que uma grande mineradora desistisse de explorar sua região. Como foi receber esse prêmio?

A gente nunca espera nada. A única coisa que a gente espera é defender nosso território e respeitar nossos direitos. Mas foi uma felicidade muito grande quando a Anglo América, a mineradora, desistiu de explorar nosso território. Eram muitos ataques. Mas quando o prêmio veio, eu fiquei me perguntando: mas por quê? E eu fui percebendo que mais gente de fora estava nos vendo também, está observando que nós existimos, que somos importantes. Uma jornalista perguntou como conseguimos barrar uma mineradora tão poderosa. E eu respondi que poderosas somos nós, porque nós temos o rio, nós temos floresta, temos povo. Não importa quem sejam os poderosos que querem nos destruir, nós vamos nos defender com nosso corpo, com o nosso cântico, com a nossa pintura e não vamos sair daqui.

Com tantos ataques pessoais, ameaças ao seu povo, aos seus direitos e ainda com os efeitos que percebemos no mundo inteiro de tanta destruição, você ainda consegue ser otimista?

Eu tenho muita esperança porque estou fazendo a minha parte. Só que sozinho nosso povo não dá conta, precisamos da população. Os países que compram ouro, madeira, carne, soja também têm que se preocupar. É preciso evitar comprar soja, comer carne ou comprar carne que vem do desmatamento, evitar usar ouro muito, comprar madeira de desmatamento. Mas tenho muita esperança principalmente nas crianças. Elas são o futuro. A criança precisa ser ouvida. Por isso que aonde quer que eu vá, eu converso com as crianças.

Por causa da militância, você fica bastante tempo afastada de sua aldeia. Mora em Santarém para fazer faculdade de direito e viaja bastante, inclusive para fora do país. Essa rotina te agrada ou você preferia estar em sua comunidade?

Eu preferia andar livre. Mas, depois que eu vi o impacto do que eu faço na minha aldeia, percebi que a minha luta não é só lá dentro da aldeia, mas também fora. Antes, eu era professora, dava aula para as crianças, gostava muito de ir pro mato, de trabalhar com artesanato. Quando vou para a aldeia e invento de pescar, eu amo o rio, fico ali viajando muito, viajo nas histórias, penso em como seria se não tivesse essas invasões. Tenho muito isso dentro de mim.

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