Lili de Grammont: 'Uma mulher salva é como nova chance à minha mãe'
Simone Costa
Colaboração para Universa
25/09/2023 04h01
"A diferença entre perder uma mulher para o câncer ou para o feminicídio, uma morte evitável, é bem clara: chama-se patriarcado." Foi com esta declaração contundente que a coreógrafa Lili de Grammont emocionou a plateia da Casa Natura Musical, na terça (19). Ela estava lá para entregar os troféus a Lúcia Xavier, vencedora do Prêmio Inspiradoras 2023 na categoria Justiça para Mulheres, e Irmã Marie Henriqueta, que ganhou na categoria Conscientização e Acolhimento.
Aos 2 anos, Lili perdeu a mãe, a cantora Eliane de Grammont, assassinada por seu próprio pai, o cantor Lindomar Castilho. "A dança foi meu apoio numa época em que não se falava em apoio para filhos de feminicídio", lembra.
Durante a participação no evento, ela falou sobre a avó Helena, que a criou até os 15 anos e teve de lidar com uma medida judicial que a obrigava a permitir as visitas do pai à neta antes de ele ser condenado e preso. Ela também emocionou a plateia ao cantar trecho da música "João e Maria", de Chico Buarque. "O que a vida vai fazer de mim?' é a pergunta que nós nos fazemos", disse em referência à letra da canção. "Minha mãe morreu cantando essa música no palco".
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O Prêmio Inspiradoras 2023 é uma parceria entre Universa, a plataforma feminina do UOL, e o Instituto Avon. Accor providenciou a hospedagem das finalistas em São Paulo e Uber, o transporte. Dias antes de participar do evento, Lili concedeu a entrevista a seguir a Universa. Falou sobre seu drama e como a dança a ajudou a superá-lo. Além disso, contou sobre o passado e o presente de sua carreira. Entre outras atividades, destacou o trabalho como coreógrafa do ator Filipe Bragança. Ele dá vida ao jovem Sidney Magal no filme "Meu Sangue Ferve por Você", que estreia no Festival do Rio, no início de outubro.
Universa: No final de 2020,você deu um longo depoimento sobre a perda da sua mãe, a condenação do seu pai e a morte da sua avó, que foi quem te criou. Nele, você diz que as aulas de dança te salvaram, pois você dançava até cansar e esquecer o que havia acontecido. Como a dança entrou na sua vida? Você foi levada pela sua avó e achou ali esse refúgio?
LIli: Ninguém me levou. Na escola, ainda bem criança, sempre participava de gincanas que envolviam dança. Já era metida a coreógrafa sem nunca ter entrado numa escola de dança, gostava de organizar todo mundo. Em Queluz, onde vivi com minha avó (dos 6 aos 13 anos), comecei a dançar lambada com um amigo, a gente ganhava os concursos nas ruas nas praças da cidade. Era a época de "Me Chama que eu Vou", do Sidney Magal, abertura da novela Rainha da Sucata. Um parênteses para contar uma curiosidade incrível! É muito interessante lembrar desse início da minha carreira dançando lambada e, de repente, vem o convite para coreografar o ator Filipe Bragança, que está no papel de Magal no filme "Meu Sangue Ferve por Você". A vida é cíclica.
Comecei, então, na lambada e, aos 13 anos, minha avó foi diagnosticada com câncer de pulmão e tivemos de nos mudar para São Paulo. Moramos na casa de uma tia, depois outra. Perto da casa da tia Carminha, a quem, inclusive, chamo de mãe, tinha uma academia de dança e eu passava em frente todos os dias a caminho da escola. Decidi que queria estar ali e, a partir do momento em que pisei naquele lugar, fiz todas as aulas possíveis e imagináveis. Saía da escola, almoçava, ia para lá e ficava até fechar. Minha avó faleceu dois anos depois e foi muito impactante. Foram três elaborações de luto em 13 anos, foi muito pesado. Minha mãe morreu quando eu tinha 2 anos, meu pai foi preso, eu tinha 6. Perdi minha avó aos 15. A dança adormecia tanto essas sensações mais antigas da perda da minha mãe e do meu pai — com o feminicídio, o filho perde os dois -, quanto da minha avó. A dança foi uma blindagem. Eu extravasava, ia para o palco com uma fúria tão violenta que as pessoas achavam que eu não queria dividir, mas não era isso. É que eu não podia. Precisava tanto daquilo. Não era o papel, não era o ego da artista de querer ser. Era uma necessidade, algo muito mais profundo que nem eu entendia muito bem o que estava acontecendo comigo.
Hoje, olho para trás e penso: a minha rigidez de horas de treinamento era porque ali estava meu cavalo de batalha. Se eu ficasse sem ele, ia para o fundo do poço. A dança foi meu apoio numa época em que não se falava em apoio para filhos de feminicídio. As primeiras políticas nesse sentido estão começando a acontecer só agora.
Como foi a bailarina, coreógrafa, uma mulher com tantos projetos, decidiu se tornar uma ativista pelo enfrentamento às violências contra mulheres?
Eu não conseguia falar sobre isso nem como meus amigos pessoais. Já era conhecida no meu meio, mas ninguém sabia o que tinha acontecido comigo. O pessoal da dança foi descobrir minha história muitos anos depois. Essa transformação começou por volta de 2018, uma vontade de falar, mas ainda muito pequenininha. O ponto principal, quando resolvi colocar tudo na mesa, foi o aumento do número de feminicídio no início da pandemia. Naquela época, vi uma foto que ilustrava uma reportagem sobre os filhos do feminicídio. A matéria apontava que 2 mil crianças eram deixadas por ano em orfanatos por causa disso. A foto era de uma criança, um menininho com a mesma idade que eu tinha quando minha mãe morreu, andando sozinha num corredor longo. Até me emociono ao falar, foi uma identificação muito forte porque é isso que a gente, filhos do feminicídio, faz. Eu tinha acabado de aprender a andar e já precisava aprender a caminhar sozinha para atravessar aquele corredor. Isso veio como um furacão dentro de mim.
A partir daí, resolvi começar a escrever, criei uma peça. Passei também a trabalhar como voluntária em lugares voltados à causa. Fui líder de comunicação do grupo Mulheres do Brasil, no núcleo São Paulo de enfrentamento à violência contra a mulher. Nessa função, aprendi muitos dos recursos para atuar em defesa das mulheres, o que fazer, aonde ir. Entendi que o processo da mulher para sair da violência se dá no encontro com o outro. É muito difícil ela sair sozinha e, ao mesmo tempo, dialeticamente, há o tempo dela, pois é uma questão muito enraizada. Como psicóloga e psicanalista, fui voluntária do grupo Apoiar, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
Passei também a defender a Casa Eliane de Grammont, que foi o primeiro Centro de Referência da Mulher (CRM) do Brasil. Na casa que leva o nome da minha mãe, juntaram pela primeira vez atendimento psicológico, assistência social e jurídica num só lugar. Hoje a gente sabe que faltou mais um elemento, que é a emancipação econômica, mas, ainda assim, o modelo se tornou referência até para outros países.
Nesse meio tempo, fui ainda estudar e ouvi de uma professora do curso de políticas públicas que eu não deveria ser só voluntária, mas sim, ativista. Aí, a chave virou de vez. Então, bati na porta de vereadoras, de maneira suprapartidária, para pedir ajuda, pois esse CRM histórico estava abandonado às traças. Isso é ser ativista, é entrar em ação. Cada mulher que é salva pela Casa Eliane de Grammont é como se minha mãe tivesse uma nova chance. É simbólico o que estou falando e, enquanto eu for viva, vou brigar por esse espaço.
Hoje sou palestrante, apresento uma palestra autobiográfica, que também serve como um treinamento. Faço isso para empresas como um trabalho de responsabilidade social e, graças à remuneração que vem desse trabalho, ofereço a mesma palestra, de forma voluntária, para entidades de defesa da mulher e outras que percebo que é importante contribuir.
Como é usar a arte, a dança, mais especificamente, que se tornou parte da sua identidade, para falar sobre um assunto tão sério?
Já criei três trabalhos sobre o tema como coreógrafa: "A Casa de Vidro - Pequenas Mortes"," Memória em Conta Gotas" e "Poema Gestual". Este foi feito para o Balé da Ilha, do Espírito Santo, uma videodança lançada durante a pandemia. Nele, eu ensino o sinal canadense de pedido de socorro. Você deixa a palma da mão voltada para a frente, fecha os dedos e segura com a mão fechada como uma bolinha. Gosto desse sinal porque o brasileiro, uma cruz vermelha na mão, pode ser perigoso. Claro que quanto mais recursos, melhor. Mas se o agressor percebe antes de a mulher sinalizar para alguém, ela pode se dar mal. O gesto canadense, não tem como perceber.
Já "Casa de Vidro - Pequenas Mortes" não é totalmente autobiográfica, mas é uma peça extremamente ativista. O Pequenas Mortes tem a ver com situações, momentos que a mulher deixou de viver por causa de uma morte que é evitável. O feminicídio não é uma fatalidade ou um acidente, não é uma morte anunciada por uma doença. É uma morte evitável por ser fruto da sociedade. Também é uma videodança, metade dança, metade teatro em que pude interpretar um texto. Em cada trecho, ora lembrava da minha mãe, ora da minha avó, ora da minha tia Helena de Grammont (jornalista, ativista, que morreu em março deste ano). Dependendo do contexto da cena, usava esses recursos emprestados delas, era como se me reportasse ao que imagino que minha avó sentia, o que imagino que minha tia Helena sentia. Minha avó foi uma guerreira silenciosa. Tia Helena foi uma guerreira ativista. São mulheres extremamente potentes, mesmo as minhas outras tias, que carregaram suas dores silenciosas.
O meu último trabalho, "Memória em Conta Gotas", feito para a São Paulo Companhia de Dança, são pinceladas do que lembro, do que sinto. Usei músicas do meu pai - "Você é Louca Demais" e "Eu Vou Rifar Meu Coração" - e finalizei com "Linda", que ele fez para mim quando estava preso no Carandiru e é um pedido de perdão. Antes de ser preso, meu pai tinha uma ordem jurídica em que tinha direito a me visitar. Ainda que dentro da sua dor, minha avó me poupou para que isso não fosse algo traumático e, assim, pude amar meu pai. A gente tinha uma ligação afetiva muito forte. (Lili só soube o que havia acontecido quando o pai foi condenado e preso, em 1984). Meu pai se transformou, de um pai amado, num pai que assassinou minha mãe e que eu não podia mais ver. Terminar o espetáculo com "Linda" como é uma bandeira branca, não no sentido de dizer que estou de acordo com o que ele fez, jamais. Mas é uma bandeira branca dentro do meu coração para a minha cura, para a superação. Estou feliz porque essa peça foi indicada ao prêmio de melhor coreografia/criação de 2023 pela APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte). O resultado sai no fim do ano, mas já é um grande prêmio criar novas memórias a partir de memórias tristes.
As mulheres que te ouvem vêm falar com você após as palestras sobre algo que as marcou, que as ajudou a despertar de alguma forma?
Sempre que termino uma palestra, as mulheres querem me abraçar e dizer que, de alguma forma, elas também passaram por uma história parecida. É sempre uma conexão fantástica. E mesmo com as peças, a repercussão é grande. Uma psicóloga, por exemplo, me contou que um paciente dela assistiu à Casa de Vidro e chegou ao consultório chorando, dizendo que não queria ser aquele homem da história, queria mudar. Isso mostra a potência do que posso fazer.
Interessante como o tema impacta também os homens. Você acha que o diálogo com eles é possível?
O homem precisa ser responsabilizado pelos seus atos, seja ele quem for. Mas a mudança deve ser mais macro, ela é necessária no sentido de uma transformação de pensamento. E por isso a importância do trabalho preventivo, que é pouco feito. É preciso quebrar o machismo estrutural que está enraizado. Esse homem, autor de violência, é meu pai e hoje, olho no olho dele. Tenho esse encontro. Ele sabe, nós sabemos o que aconteceu. E digo para ele que sou ativista e faço esse trabalho. É uma ferida aberta, nem sempre as conversas são tão profundas, mas há um diálogo também no que não é dito. Se tivesse um poder mágico, voltaria no tempo e avisaria: "vou ser sua filha no futuro e a gente vai perder muitos momentos". O homem que mata também morre. É da maior importância abrir o diálogo, aceitar aqueles que querem fazer essa transformação junto com a gente. Eles são imprescindíveis.