'Cabelo curto, gorda e pansexual em microcidade do Piauí. Era alienígena'
Acostumada com uma cidade grande como São Paulo, a estudante Lara Kermily Moraes, 19, estranhou quando precisou se mudar com a mãe para Paes Landim, município de Piauí com cerca de 4 mil habitantes.
A estudante conta que se sentia como um alienígena: é gorda, usa o cabelo curto e não se veste de acordo com os "padrões". Além disso, é assumidamente LGBTQIA+ — algo totalmente diferente do cenário em que passou parte da adolescência. Leia o relato de Lara a Universa:
"Cresci na cidade de São Paulo e, quando tinha 14 anos, me mudei para Paes Landim com a minha mãe. Ela vivia em um relacionamento abusivo e decidiu voltar a morar com minha avó. Eu não queria ter me mudado, mas era nossa única opção no momento.
É muito complicado ser tão diferente em uma cidade tão pequena. Era a única guria com cabelo curto, gorda e assumidamente LGBTQIA+. Também não performo da maneira que as pessoas esperam de uma mulher: estou sempre de bermuda e com maquiagem mais leve. É uma situação que você se sente mal, como um alienígena.
Sou pansexual, que é quem sente atrações por pessoas de qualquer gênero, e me considero com gênero fluido [pode se identificar com mulher em algum momento, homem em outro ou agênero, que é sem gênero]. Ainda estou investigando, mas no momento, você pode usar o pronome 'ela' comigo.
Então, quando morava em São Paulo, só tinha uma amiga heterossexual. Todos meus outros amigos eram bissexuais, lésbicas ou trans. Sempre estive acostumada com vários tipos de pessoas.
Ter passado por isso em São Paulo foi mais natural porque sempre via pessoas parecidas comigo, desde mais novas até mais velhas. Mesmo que houvesse preconceito na família, não era algo que soava como anormal.
Ninguém na minha cidade era assumido. Na escola, sofria muito bullying, já estava acostumada, mas em uma cidade pequena é pior: é como se o tempo todo você sentisse que não pertence ao lugar. Me sentia muito mal, tenho lembranças péssimas.
As pessoas olhavam muito, faziam perguntas inconvenientes. Além de me vestir de forma diferente, há o fato de eu não ter um corpo padrão, de eu ser gorda.
Chegava exausta em casa, me trancava no quarto para dormiu ou chorar. Não tinha mais energia para lidar com tudo aquilo. Foi a fase em que mais me fechei, apaguei meu WhatsApp e não queria mesmo falar com mais ninguém. Nada ali me fazia feliz, só queria me isolar.
Foi quando procurei uma psicóloga aqui no postinho da cidade, pelo SUS, senão poderia ter feito algo mais drástico. Foi ela quem me ajudou nesse processo de não me importar tanto com o que as pessoas vão falar de mim.
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Quero receberMinha família só foi saber dos meus problemas, que eu estava com depressão e ideação suicida, quando a situação chegou no limite e levei as questões que estava lidando: da doença e dos remédios que precisaria.
Depois de algum tempo, a Marcia [psicóloga] também comentou que tinha um projeto focado para o atendimento à população LGBTQIAPN+.
Passei na ginecologista pela primeira vez aos 19 anos. Tinha receio em me sentir desconfortável. Mas o ginecologista era um homem gay e tinha outra médica trans. Foi muito confortável, tirei várias dúvidas. Me senti muito acolhida.
Sempre penso que, independentemente de onde esteja, pessoas LGBTQIA+ devem se sentir acolhidas e abraçadas. Por isso, fico muito feliz com esse tipo de projeto.
Acho que agora estou na melhor fase da minha vida. Vim morar em Oeiras, que é uma cidade um pouco maior que Paes Landim, para estudar história na Universidade Estadual do Piauí. E, claro, continuo fazendo terapia.
Com ajuda da minha família, encontramos um quarto em uma casa que costuma alugar para estudantes. Estou apaixonada pelo curso. Tem várias pessoas LDGBTQIA+ dispostas a tornar o lugar mais acolhedor para todas as minorias
Agora estou conhecendo bastante gente nova na faculdade. Também tenho uma melhor amiga aqui, que é 'doidinha', bem parecida comigo."
Sobre o projeto
O projeto TeleNordeste, citado por Lara, é da BP - A Beneficência Portuguesa de São Paulo dentro do Proadi-SUS (Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde), em parceria com o Ministério da Saúde.
A iniciativa está capacitando médicos sobre a linha de cuidado da população LGBTQIAPN+ em 340 Unidades Básicas de Saúde (UBS) nos estados do Maranhão, Alagoas e Piauí.
Isso é importante dentro de um contexto na qual mais da metade dos profissionais de saúde não estão capacitados para atender a população LGBTQIAPN+, como aponta pesquisa da Faculdade de Medicina da USP.
Procure ajuda
Caso você tenha pensamentos suicidas, procure ajuda especializada como o CVV (www.cvv.org.br) e os Caps (Centros de Atenção Psicossocial) da sua cidade. O CVV funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados) pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil.
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