'Eu era a violência dela': ela se descobriu homofóbica após mãe se assumir
A secretária executiva Daniela Perrelli, de 40 anos, levou um susto quando a mãe, Etiene, disse que estava namorando outra mulher, a Neide.
Apesar de não saber explicar o motivo, aquilo não parecia certo para ela. Daniela tomou a decisão de se afastar da mãe e, por quatro anos, evitou contato. Ela não se considerava homofóbica.
Anos depois, após uma palestra, ela se deu conta que era a fonte de violência dentro da própria família. E decidiu acolher a mãe e a madrasta, além de ajudar outras pessoas. A Universa, ela conta sua história:
'Lembrava da minha mãe triste'
"Sou a filha mais velha de três irmãs e, quando eu completei 24 anos, meus pais se separaram. Eles sempre tiveram um relacionamento cheio de conflito, mas tinham muito cuidado conosco, de explicar para a gente pautas raciais, a questão da inclusão. Eles sempre nos motivaram a conhecer outras culturas.
No mesmo ano que eles se separaram, em 2006, eu me casei pela primeira vez. Já estava na fase adulta, então não acompanhei muito essa vivência deles. Foi a minha mãe que saiu de casa, ela foi morar com a mãe dela, e eu fazia aquelas visitas para ver se estava tudo bem.
Eu vi que a minha mãe começou a viver uma vida que eu não me recordava. Minha memória de criança era dela sempre deprimida, triste. E ela começou a trabalhar, voltou a fazer faculdade, saía com os amigos.
Eu via aquilo e pensava: minha mãe está reconstruindo a vida dela. Na minha mente, isso tudo ainda era suportável e eu achava normal. Depois, comecei a perceber amigas homossexuais frequentando a casa dela e passei a sentir um desconforto, mas não sabia identificar o que era.
Minhas irmãs já tinham uma cabeça diferente da minha e incentivavam a minha mãe a sair, namorar. Eu olhava tudo isso com muita estranheza e comecei já a manifestar meu desconforto em relação a isso, de forma muito tímida e sutil.
Ali, eu comecei a perceber que eu tinha um lado homofóbico, mas ainda não me considerava plenamente. Eu só achava que estava colocando a minha opinião de não gostar, não achar que era normal para uma mãe. Nem sempre fui uma pessoa com a cabeça aberta.
'Senti revolta e raiva'
Eu sempre via minha mãe com uma mulher nas fotos que ela apresentava como amiga. Nunca passou pela minha cabeça que poderia ser a namorada dela. Mas, o ano em que minha mãe contou que estava tendo um relacionamento com outra mulher, foi o ano que me separei.
Eu estava sofrendo muito, passando dificuldade com relação ao divórcio. Estava envolvida com outros problemas. Ela sempre vinha em casa às sextas para passar um tempo com a minha filha e tomar café.
Eu percebia que ela queria conversar comigo, mas não tinha muito espaço. Ela ficava me rodeando, assim como filho faz com a mãe, sabe? Mas ela nunca falava nada.
Foi quando um dia, de madrugada, eu já estava dormindo, minha mãe fez um grupo no WhatsApp. Colocou eu, minhas duas irmãs e os dois netos — minha filha Julia e meu sobrinho.
Ela contou, por mensagem, que estava em um relacionamento de alguns anos com uma mulher. Minha mãe disse que tinha procurado diversas oportunidades para sentar conosco e contar, mas que não se sentia acolhida.
Todo mundo leu, menos eu. Quando acordei, vi que minhas irmãs responderam incentivando, dizendo que iriam acolhê-las, que queriam conhecer a namorada dela. Os netos também. Só faltava eu.
Eu vi aquela mensagem e falei: 'cara, deixa eu ler de novo, acho que entendi errado'. Li diversas vezes para entender que, de fato, era aquilo mesmo. Minha mãe estava namorando uma mulher.
Aquilo me subiu, eu lembro da sensação de revolta e raiva. Não sei explicar. Eu não respondi à mensagem, era um negócio muito surreal para mim. A primeira reação foi de inconformismo mesmo.
'Você é homofóbica'
No dia seguinte, minha mãe me mandou uma mensagem perguntando se eu tinha lido e se eu não iria falar nada. Liguei para a minha mãe e disse que não queria mais falar com ela, que não achava aquilo certo e que não queria que ela frequentasse mais a minha casa.
Ela me perguntou o motivo daquilo e me confrontou: 'Por que eu não posso me relacionar com uma mulher? Por que você acha errado?'. E eu não sabia explicar.
A partir desse momento, cortei o contato com ela. Ela tentou, ao longo de quatro anos, falar comigo. Ela ia na minha casa, ligava, mandava mensagem, recado pelas minhas irmãs. Antes de ir para festas de família, eu procurava saber se ela e a namorada estariam lá. Se sim, eu não ia.
Eu já fazia terapia e, na época, minhas sessões se voltaram para isso. Minha terapeuta me questionava por que eu não aceitava e eu não sabia explicar. Um dia, ela disse: 'então, você é homofóbica, e a gente precisa tratar isso'.
Eu me revoltei contra todo mundo: minhas irmãs, minha terapeuta, minha filha. A Julia falava para mim: 'mãe, isso que você está fazendo é muito errado, é crime, você não pode fazer isso'. Eu nem respondia.
'Minha mãe é casada com uma mulher'
Um dia, no meu trabalho, começaram a levantar pautas de inclusão e diversidade. Uma das executivas me pediu para fazer uma pauta sobre homofobia dentro de uma plenária dela. Fiquei meio balançada, não sabia quem chamar para falar sobre esse tema. Era algo que mexia comigo.
Tinha um rapaz, dentro da empresa, que foi intitulado porta-voz para a comunidade LGBT. Ele foi convidado para palestrar e contou justamente sobre como se assumiu gay, e como a família dele reagiu de forma violenta.
Ele foi colocado para fora de casa, ficou muito tempo sem ter contato com a família. E, na apresentação dele, ele fez uma cronologia de como foi de [um filho] amado a uma pessoa não aceita por sentir atração por outros homens.
Eu estava sentada na primeira fileira e ele perguntou se alguém sabia o significado de estupro corretivo. Levantei a mão e ele pediu para eu explicar. 'É quando uma mulher lésbica é violentada por um homem que acha que, com aquilo, ela vai se tornar heterossexual', falei.
Ele perguntou como eu sabia disso e eu respondi: 'minha mãe é casada com uma mulher'.
'Eu era a violência da minha mãe'
Na hora, fez um silêncio no auditório e todo mundo olhou para mim. A executiva que eu atendia perguntou: 'como você nunca falou isso?'. Eu me dei conta, ali, que eu era como a família do palestrante. Eu era a violência da minha mãe.
Caiu em mim o peso de ser, por anos, uma pessoa homofóbica. Não podia mais ser essa pessoa. Não podia ser propagadora de violência contra a pessoa que me gerou, que me ama e só quer ser feliz. Preciso levantar a minha voz e ajudar outras pessoas.
Quando acabou a palestra, várias pessoas vieram falar comigo pedindo ajuda. 'Meu filho é gay, eu quero aceitar'. E eu pensava: 'meu Deus, como vou falar para essas pessoas que eu não tenho nem contato com a minha mãe?'.
Saí da plenária e fui para casa refletindo como faria para reconstruir minha história com a minha mãe. Mandei mensagem e liguei para ela perguntando se poderia almoçar na casa dela.
Ela disse que sim, mas que a Neide, minha madrasta, estaria lá. Eu disse que não tinha problema. Levei minha filha, conversamos e todo mundo estranhou aquela situação. Elas não tocaram no assunto, e lembro da minha sensação de alívio: aquilo era uma família também.
Com os meus pais, eu nunca tive essa sensação de família. E eu estava ali, com duas mulheres casadas sentadas em uma mesa, e tive esse sentimento. Nos próximos encontros ainda não consegui tocar no assunto, mas depois conversamos e eu pedi desculpas.
'Quero que você seja feliz'
Minha mãe me perdoou por tudo o que fiz e fui super acolhida pela minha madrasta. Depois, minha irmã mais nova veio conversar comigo e se assumiu bissexual. Ela não contou antes porque não queria perder o contato comigo.
Desde então, participo de grupos de diversidade e inclusão dentro da instituição que eu trabalho, acabei virando uma aliada bem forte para ajudar na questão da homofobia. Uso minha voz para ajudar outras pessoas.
Ainda teve outra reviravolta, porque neste ano minha filha conversou comigo e disse que também sente atração por mulheres. Perguntou o que eu achava e eu vi como a história evoluiu e a gente aprende lições.
Minha recepção foi totalmente diferente. Eu a abracei e falei: 'Julia, eu quero que você seja feliz, isso nunca mais vai ser um problema dentro de casa'. Ela respondeu: 'mãe, você mudou, né?'. E eu realmente mudei."