Topo

'Já ouvi que não tinha tom de pele comercial', diz atriz da Globo

Imagem: Instagram/@joaowesleey

De Universa, em São Paulo

07/11/2023 04h05Atualizada em 08/11/2023 15h05

Cansada de esperar por telefonemas para participar de testes, a atriz Maria Gal, 47, ajudou a fundar a companhia de teatro, a Os Crespos, só com atores negros, e a produtora Move Maria.

"Quando [o telefone] tocava, era para fazer personagens pequenos ou estereotipados, às vezes até para não passar por ser preta retinta. Já ouvi que eu não tinha um tom de pele tão comercial quanto gostariam", conta a atriz baiana, mas que vive em São Paulo.

Neste ano, Maria Gal retornou à Globo e atuou na novela das seis "Amor Perfeito" como a governanta Neiva e está no elenco do filme "Diário de Dona Lurdes", em fase de produção. Em entrevista a Universa, ela conta como enxerga a representatividade de personagens negros no audiovisual brasileiro.

A atriz também falou sobre relacionamento interracial, congelamento de óvulos e como identificou os primeiros sintomas de demência de sua mãe, aos 88 anos. Confira a entrevista.

Universa: Este ano, tivemos novelas de muito sucesso na TV com protagonistas negros. Como você avalia o avanço dessas personagens?
Maria Gal:
É inegável o avanço. Mas existe um recorte histórico importante: o assassinato cruel de George Floyd, que abalou o mundo em 2020 e, a partir disso, o surgimento do movimento "Black Lives Matter".

Este momento marca o início de uma mudança cultural, não só na sociedade, mas também nas grandes empresas multinacionais, em relação à importância da representatividade racial.

Algumas empresas até colocaram metas para ter mais pessoas negras em cargos de liderança. Depois disso, temos tido grandes investimentos e cobranças por parte da sociedade também. Temos o início de uma mudança em diversas áreas, inclusive no audiovisual.

A novela "Vai na Fé" foi o grande case em relação a isso, não só por conta do protagonismo da Sharon [Menezes] e dos atores negros que tiveram grande relevância na trama, como a própria Clara [Moneke], e isso só foi possível porque tinha roteiristas negros na equipe.

"Amor Perfeito" também veio nesta nessa mesma linha. A novela nasce com um propósito de trazer metade do elenco negro, tem uma direção artística de um homem negro, o André Câmara, e o Elísio [Lopes Jr.] no roteiro.

Foi uma novela de época que nasce com o propósito de trazer novas imagens, quebrar determinados paradigmas em relação à pauta racial —até de questões que não aprendemos na escola, como mostrar que já havia advogados negros ou pessoas negras com destaque social.

Maria Gal como Neiva em "Amor Perfeito" Imagem: Ellen Soares/ Aura Estúdio

O sucesso dessas novelas mostra, de uma maneira clara e objetiva, o quanto que o Brasil quer se ver na tela — não só pessoas negras, mas também pessoas brancas.

Você inicia sua carreira no teatro. Como se interessou pelo audiovisual?
Venho de teatro de grupo. Apesar de ser baiana, minha primeira saída de zona de conforto foi para São Paulo, para onde migrei no início dos anos 2000. Estudei na USP, passei pelo [Teatro Oficina, de] Zé Celso. Vivi muito aquele universo teatral, muito potente e progressista. Mas sou uma das fundadoras da companhia de teatro Os Crespos, que trabalha só com atores negros, justamente por sentir falta de ver mais atores negros nos palcos paulistas naquela época.

Quando me mudo para o Rio de Janeiro, venho muito focada no audiovisual. Como uma boa capricorniana, gosto de coisas difíceis.

Fundei minha empresa, a Move Maria, porque o telefone não tocava para mim, nem para fazer testes nem para trabalhos. Quando tocava, na época, a maioria das vezes era para fazer personagens pequenos ou estereotipados, às vezes até para não passar em testes por ser preta retinta.

Já ouvi que eu não tinha um tom de pele tão comercial quanto gostariam. Fundei minha empresa justamente para quebrar o paradigma no audiovisual, também como produtora e como apresentadora.

Imagem: Reprodução/Instagram/@mariagalreal

Você já fez declarações sobre como o colorismo é cruel. Como você sente isso, mesmo com os avanços que tivemos na pauta racial nos últimos anos?
A Lupita [Nyong'o] tem uma fala muito maravilhosa: o colorismo é o filho do racismo. Acredito que o colorismo é tão cruel quanto o racismo.

Não ter representatividade de mulheres pretas retintas demonstra claramente como o Brasil é um país racista. Mulheres negras com mais traços afros —como cabelo crespo, nariz largo— têm menos oportunidades de trabalho. É muito cruel.

Quando falamos sobre isso não é para segregar: é para apontar para a realidade. Assim como é importante que pessoas brancas se sensibilizem para a pauta racial e falem sobre isso no lugar de fala delas, é importante que mulheres mais claras e retintas falem disso.

Você anunciou noivado com o empresário Fabio Nahon. Como esses temas raciais atravessam o relacionamento de vocês?
Lidamos da forma mais saudável possível. Às vezes, sou questionada: 'Poxa, você fala da pauta racial, mas você tá com um homem branco', mas as pessoas não têm ideia do que já passei em relacionamentos anteriores.

Já vivi uma relação abusiva e depois passei a repetir padrões. Com muita terapia e espiritualidade, num processo de anos, decidi que precisava de alguém que realmente me valorizasse e me respeitasse; que não importava se era um homem negro, branco ou se era de Marte, queria uma relação saudável. Defini algumas características que, para mim, eram essenciais em um amor verdadeiro. E aí apareceu o Fábio.

A atriz Maria Gal e seu noivo, o empresário Fábio Nahon Imagem: Instagram/@mariagalreal

Estamos juntos porque ele percebeu no início da relação o quanto ele precisava se letrar não só a partir de mim. Ele não tinha nem um pouco da consciência racial que ele tem hoje. Se ele não fosse essa pessoa que vem buscando entender, certamente não estaria com ele.

Seria muito cruel comigo mesmo se falasse que não iria me relacionar com ele porque ele é branco, depois de todo sofrimento que tive de relações violentas.

Falamos muito sobre isso, ainda mais porque planejamos ter filhos. Inclusive com a família dele, é um assunto muito conversado. Como também sou influenciadora, começamos a produzir alguns vídeos juntos —por exemplo, sobre privilégio branco, que ele não entendia esse conceito no início da nossa relação, então vamos conversar sobre coisas que eu já passei por ser mulher negra e que ele não passou por ser homem branco.

Você contou nas suas redes sociais a decisão de congelar óvulos aos 42 anos. O que te motivou?
Adiei muito essa questão da maternidade por medo. Medo de conseguir sobreviver, medo do futuro, medo de não ter oportunidade como atriz. Adiei muito, mas, ao mesmo tempo, amo criança e acho que é um medo que tenho que desbloquear.

Mulheres vêm adiando cada vez mais a questão da maternidade pela questão do trabalho. Vamos adiando até o momento que temos que dar uma atenção e cuidado em relação a essa pauta. Optei por congelar numa época que não estava namorando, mas sabia que em algum momento gostaria de ter. Congelei já aos 45 do segundo tempo.

Você já passou por alguma situação de etarismo?
Essa pauta mesmo de ser mãe. Me questionam porque já tenho 47 e me perguntam coisas como 'você vai ser mãe com quantos anos? Com 50?'

No trabalho, geralmente já nos abordam sabendo a idade que você tem ou você aparenta ter. Então, vivemos isso até sem saber. Só percebemos pelos tipos de papéis que são ofertados, sabe? Isso fala por si.

No audiovisual nacional brasileiro, quem tá assinando o cheque, dirigindo e produzindo a maioria dos filmes, obras ou comerciais não são pessoas negras. Estamos à mercê do olhar do outro, cheio de vieses inconscientes em relação à pauta racial.

Passei a produzir justamente por isso. Sei que por mais que falemos mais sobre diversidade, estamos só no início de uma caminhada. E agora quando pensamos em mulheres mais velhas, esses papéis são sempre de mulheres brancas. Como se a mulher negra não tivesse afeto, não tivesse dinheiro, como se não gostassem de luxo, de carro, não usassem absorventes, margarina?

Você falou nas redes sobre o diagnóstico da sua mãe, que a partir dos 88 anos começou a demonstrar sinais de demência. Como tem sido este processo de lidar com a doença?
No início, foi extremamente triste e doloroso para mim. Não tinha dimensão nem entendimento do que era a doença.

O caso da minha mãe representa o de muitos idosos no Brasil e no mundo, inclusive até existem pesquisas sobre isso: o desenvolvimento da doença após a pandemia. Minha mãe era uma pessoa antes da pandemia e outra completamente diferente depois do período de isolamento.

Ela saía muito, participava de grupo de idosos, fazia atividade no Sesc. Era extremamente ativa. Percebi que ela estava diferente por telefone, durante a pandemia. Não sei dizer a diferença que senti, não sei se era uma forma de falar... Enfim, senti que tinha alguma coisa errada. Fui imediatamente para Salvador e fiquei com ela um período para entender o que estava acontecendo.

Minha mãe sempre foi uma mulher muito vaidosa, cuidava da casa e dela, com muita autonomia. E aí você começa a perceber certos desleixos, seja na higiene pessoal, seja na casa e também problemas com relação à memória. Até entender que ela estava passando por um processo de demência levou um tempo.

Depois do diagnóstico ainda tem um tempo para encontrar a medicação e dosagem certa, por causa de efeitos colaterais, como alucinação. É um processo realmente muito triste, de como você começa a ver sua mãe e seu pai. Hoje estou administrando isso à distância, temos uma equipe de cuidadoras 24 horas por dia, fisioterapeutas todos os dias, professora de cognição; e ela está voltando também a ter atividades fora de casa.

É mais comum que as mulheres assumam esse papel de cuidadoras. Que dicas você dá para mulheres que estão nesta situação de cuidado com alguém próximo que está doente ou em um tratamento como este?
Não é fácil. Tem que se cuidar emocionalmente porque se você está mal, como você pode ajudar sua mãe, seu pai, seu idoso? Bate muito profundamente porque conhecemos uma nova mãe ou um novo pai.

Existem pesquisas que mostram que pessoas negras estão mais suscetíveis a ter esse tipo de doença, porque é uma doença que não vem apenas pela questão genética, mas também pela nutrição. Alimentos, atividade física regular, os estímulos cognitivos, seja outra língua, seja piano ou outros instrumentos musicais, tudo isso impacta no diagnóstico e requer tempo e dinheiro.

Minha dica é essa, se cuidar muito. A família também deve se cercar de excelentes profissionais —neurologista, geriatra, fisioterapeuta, nutricionista. Mudar a dieta e consumir mais determinados tipos de alimentos, que ajudem a melhorar a memória e a cognição também. Não é barato, é um gasto financeiro, mas que é necessário para manter a qualidade de vida e social desse idoso.

Comunicar erro

Comunique à Redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

'Já ouvi que não tinha tom de pele comercial', diz atriz da Globo - UOL

Obs: Link e título da página são enviados automaticamente ao UOL

Ao prosseguir você concorda com nossa Política de Privacidade


Universa Entrevista