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Gahbi, não binárie, narra saga para mudar gênero: 'Luto com afeto e fúria'

Gahbi, não binárie, conseguiu retificação de gênero na Justiça do DF Imagem: Reprodução/ Instagram @gahbioficial

Martina Colafemina

Colaboração para Universa

12/11/2023 04h00Atualizada em 12/11/2023 06h13

Gahbi, intérprete de Polvilho na novela "Elas por elas" e pessoa não-binária, narra as dificuldades para conseguir a retificação de gênero em sua certidão de nascimento. O documento agora tem o termo "não-binário", além da mudança no nome.

Foi a primeira vez que uma pessoa não-binária (que expressa sua identidade de gênero fora do sistema binário feminino/masculino) conseguiu isso por meio de uma ação individual (não coletiva) no Distrito Federal, segundo sua advogada, Cíntia Cecilio, presidente da Comissão de Diversidade Sexual da OAB-DF.

A Universa, Gahbi, 34, conta sua história.

'Estrangeiro no mundo'

Passei por muitos processos de silenciamento disfarçados de timidez, especialmente na adolescência, diante de uma sociedade que apontava em mim o erro de ser quem eu era e empurrava goela abaixo a culpa de existir.

Isso era muito pesado, especialmente em uma idade em que não há muita maturidade para se defender.

Na minha geração, dos anos 1990, ser LGBT+ era um pecado, quase um crime para a sociedade e a família. Família esta que assistia aos domingos ao erotismo da banheira do Gugu: nosso Brasil cheio de contradições.

Até então, me entendia como um homem cis gay afeminado. Mas, ainda assim, permanecia em mim essa sensação de ser estrangeiro no mundo.

Em 2021, entrei para uma oficina de arte drag queen e transformista e isso me permitiu conhecer e conviver com pessoas cis, trans binárias e não-binárias, travestis e de sexualidades diversas.

Ali mergulhei nos estudos queer, sociais, antropológicos, filosóficos e históricos. Na internet, vi essa nova menção de gênero como não binárie aparecendo mais.

Finalmente, apareceu em mim um tipo de certeza e identificação como transgênere não binárie. Acredito que a troca com pessoas trans e saber das histórias de vida me mostrou vivências e sentimentos parecidos com os meus.

A não binariedade surgiu como possibilidade de existir. Senti que tinha encontrado meu lugar no mundo.

'Batalhas não seriam simples'

A conquista da retificação [no documento] só foi possível graças ao apoio, incentivo e ação da minha mãe e da minha amiga e advogada nesse processo.

Descobri, por meio do Instagram, que em alguns lugares do Brasil pessoas não binárias estavam lutando, individual ou coletivamente, e conseguindo alterar o gênero para não binárie na certidão de nascimento e demais documentos.

Foi aí que conheci e dialoguei com a artista não binária Amon Kiyá, que tinha conquistado esse direito no Rio. Por meio desse exemplo, foi despertado em mim o desejo de fazer a minha retificação.

Gahbi conta que se sentia 'estrangeiro no mundo' até se descobrir não-binárie Imagem: Arquivo pessoal/Gahbi

Procurei alguns advogados antes de encontrar a Cíntia, todos homens héteros e cis. A maior parte deles não compreendia ou descredibilizava o desejo da mudança de gênero.

Já a Cíntia me respondeu de prontidão e me explicou as possíveis implicações previdenciárias e em outros setores. Minha mãe custeou esse processo e me deu todo apoio e afeto.

Sabíamos que era uma ação pioneira e que as batalhas não seriam tão simples. E não foram simples mesmo porque ainda há muito preconceito mascarado de burocracia.

Houve mudança de vara, encaminhamento para o Ministério Público. A ideia inicial do processo também era o acréscimo dos sobrenomes de minha mãe e minha avó ao meu nome. Na tradição machista da época, fui registrado só com os sobrenomes paternos. O processo foi de retificação de nome e de gênero junto.

O primeiro juiz liberou os sobrenomes, mas passou o caso para outra vara porque não estaria apto para julgar o caso do gênero. Na outra vara, encaminharam ao Ministério Público, que queria fazer perícia médica em mim.

Juntamos relatórios da psicóloga e da psiquiatra que me acompanham e seguimos até a sentença final.

'Maioria era ofensiva'

Logo que saiu a sentença, a notícia já estava rodando nos portais jurídicos e redes sociais. A coisa se replicou e, de 2 mil comentários em um post, por exemplo, havia 10 ou 15 positivos.

A maioria era extremamente ofensiva e agressiva, coisas proferidas por advogados e juristas, inclusive. Isso me assustou, mas minha mãe me acalmou. Até respondi alguns que, quando viram que estavam sendo lidos e respondidos pela pessoa que estavam ofendendo, recuaram, apagaram e se desculparam.

"Precisei usar da fúria para me manter em pé. Porque se eu acreditasse em tudo o que falavam sobre mim, eu não me manteria".

Essa frase da Linn da Quebrada me marcou profundamente e ela é uma pessoa muito importante na construção do meu orgulho. É com afeto e fúria que seguimos lutando por direitos básicos.

'Lugar no mundo'

Sinto-me feliz, pessoalmente, por ter dado um passo importante sobre a conquista do meu lugar no mundo e com a coragem de ser quem sou. Mas também vejo como uma conquista de todes, todas e todos.

Espero que possa abrir caminhos para que outres não bináries não precisem recorrer a uma ação na Justiça ou aguardar um mutirão anual para ter seu gênero garantido. Desejo que isso possa ser feito nos cartórios de todo Brasil e que, tendo sido reconhecida a nossa existência cidadã, possamos lutar por políticas públicas novas e mais inclusivas.

Antes mesmo de entender o que é ser uma pessoa não binária, o mais importante é a sociedade saber que pessoas assim existem, têm valor e precisam ser respeitadas. Respeitar o próximo já é entender tudo.

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