'Pedido foi parar no STF, fiz aborto na Colômbia e hoje ajudo outras'
Quando Rebeca Mendes, 36, descobriu que estava grávida, entrou em desespero. Ela tentava há meses colocar um DIU, sem sucesso. Em meio à busca por alternativas para não levar a gestação adiante, Rebeca viu seu caso parar no STF, teve o direito ao aborto negado, mas conseguiu interromper a gravidez legalmente na Colômbia.
A advogada fundou uma organização para facilitar o acesso ao aborto legal. A Universa ela contou sua história.
'Foi um choque'
"Descobri que estava grávida quando estava me separando. Era mãe solo de duas crianças, de 7 e 9 anos, tinha um trabalho que ia acabar em três meses. Passei o ano inteiro tentando trocar meu método contraceptivo: queria colocar um DIU, mas tudo foi muito burocrático, demoraram 9 meses para agendar um exame, depois tiveram um problema técnico e nisso engravidei.
Fui a única responsabilizada por todo um descaso. Quando veio a notícia da gravidez, foi bem difícil: estava no meio da faculdade, não tinha plano de saúde. Vi o resultado do teste e fiquei desesperada, foi um choque.
Comecei a procurar maneiras de fazer uma interrupção porque sabia que não queria levar a gestação adiante e morria de medo de cair em golpe na internet, comprar qualquer coisa sem saber o que era, passar mal e ser denunciada no hospital. Ou pior: morrer.
'Vida de cabeça para baixo'
Fui orientada a falar com uma pessoa, que mais tarde soube que era a Débora Diniz [professora e ativista de direitos reprodutivos]. Não a conhecia, mas contei a ela minha situação e perguntei se poderia me ajudar. Foi aí que ela sugeriu levar o caso ao STF [Supremo Tribunal Federal].
Depois que se tornou público o pedido, minha vida virou de cabeça para baixo. Comecei a receber ligações de várias pessoas, a ser procurada por organizações que me ofereciam cesta básica, enxoval, como se isso fosse o motivo de escolher interromper a gravidez. Vi vários comentários maldosos na internet.
Trabalhava e chorava porque era bombardeada por ataques. Parei de olhar as redes sociais, não assistia às entrevistas que eu dava. Foi tudo muito complicado e ainda tinha de lidar com os hormônios da gravidez.
Fui chamada de assassina e comentários [na internet] desejavam a morte dos meus filhos. Em todo momento, era a única culpada, a única responsável, como ainda é hoje. Quando uma mulher engravida a culpa é sempre dela. Nunca é o contexto dela, a negligência médica, o abandono paterno, ninguém nunca pergunta cadê o pai.
'Não levou nem 20 minutos'
Entre protocolar o pedido e esse rebuliço, fui convidada por uma organização para ir à Colômbia, onde o aborto é legalizado em três situações: quando a gravidez coloca em perigo a saúde física ou mental da mulher, quando é resultado de estupro ou incesto e em situação de malformação do feto.
Como a legislação colombiana entende que o risco à vida da mulher também entra no âmbito psicológico, me encaixei. O procedimento não levou 20 minutos.
Me senti acolhida e, no final, aliviada, mas também tinha um sentimento de revolta porque eu poderia ser mais uma estatística. Sei que não sou diferente de nenhuma outra mulher e não me sentia confortável de ter essa experiência de acolhimento como uma exceção, e não a regra.
Na Colômbia, minha decisão foi tratada com muita naturalidade. Era uma clínica especializada em saúde da mulher que atendia pessoas que queriam fazer fertilização in vitro, mulheres com câncer de mama e as que desejavam fazer aborto. Tudo muito integrado, entendendo que a interrupção da gravidez é uma questão de saúde.
Quando voltei ao Brasil, fui trabalhar e viver minha vida normalmente, mas, com o passar do tempo, as mulheres começaram a chegar nas minhas redes, me perguntando como era o procedimento na Colômbia. E, assim, em 2020, nasceu o Projeto Vivas.
No começo, a ideia era ajudar outras mulheres a acessar o aborto legal na Colômbia e na Argentina [direito aprovado em 2020 para toda gestante até a 14ª semana], mas comecei a entender que não é só chegar ao aborto em outro país: existe uma barreira que impede as mulheres aqui.
Vai desde a falta de informação sobre o acesso ao aborto legal à experiência de procurar o serviço no hospital, na legalidade, e não ter o desejo respeitado. Além disso, muitas mulheres que engravidam após sofrer violência sexual têm dificuldade de entender que foram vítimas e podem buscar o aborto legal no Brasil.
Também vemos problemas da burocracia. Uma gestante pode ficar um mês entre exames, assistência social e ainda receber informações equivocadas. E ainda há a questão da distância: uma mulher que busca o aborto legal no interior do Amazonas, por exemplo, pode ser direcionada a São Paulo. É uma distância muito longa e cara para percorrer.
Assim, o Projeto Vivas evoluiu e auxilia no acesso ao aborto legal no Brasil e em outros países. O perfil dessas mulheres é variado, mas vemos que quem procura para acessar clínicas na Argentina e na Colômbia são brancas, de alta escolaridade, com rede de apoio e situação financeira confortável.
Quando procuram aborto legal no Brasil, são mulheres negras, periféricas, que já tentaram outros meios clandestinamente e não conseguiram.
Quando a gente finalmente recebe a mensagem de que uma mulher está no hospital sendo acolhida é a maior vitória. Isso dá gás para continuar, mesmo com as pauladas.
Vejo como estamos atrasados no debate sobre esse tema no Brasil. Há muita informação falsa sobre quem é a mulher que faz aborto e uma crença de que ele não acontece, mas não é isso o que vemos. Com nosso trabalho, queremos quebrar esse estigma."