Cartilha do governo para brasileiras no exterior tem erros, dizem entidades

Uma cartilha para brasileiras que vivem no exterior editada pelos ministérios das Mulheres e das Relações Exteriores tem "erros" e "cara de que foi preparada no século passado", segundo entidades que prestam assessoria jurídica e psicológica a migrantes.

A publicação "Prevenção de violências contra mulheres brasileiras no exterior" foi lançada na segunda-feira passada (15). A versão digital está disponível para download no site do governo federal.

"Um ultraje", escreveu Stella Furquim, diretora do Gambe (Grupo de Apoio a Mulheres Brasileiras no Exterior) ao comentar a cartilha no Instagram. Foi ela quem afirmou que o documento parece "ultrapassado".

Convenção de Haia

A maioria dos erros apontados pelas duas entidades diz respeito à Convenção de Haia, acordo internacional que prevê que Estados devem assegurar o retorno de crianças tiradas ilegalmente de seu país de residência habitual —o Brasil é um dos 103 signatários do tratado.

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Imagem: Reprodução/ Governo Federal

A cartilha recomenda que mães que pretendem retornar ao Brasil com filhos "tenham autorização do pai para evitar sofrer acusação de sequestro/subtração, que pode levar até à perda da guarda".

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"É uma redação dúbia", afirma a advogada Juliana Wahlgren, diretora da Revibra Europa.

A autorização de viagem não é suficiente para evitar um pedido de retorno. A autorização deve ser de residência, que evitaria a surpresa de um processo administrativo ou judicial no país Juliana Wahlgren, advogada

'Passaram por cima'

Outro ponto "muito grave", segundo Stella Furquim, é o trecho da cartilha em que se lê que "idealmente, antes de sair do país com a criança, as questões de visitas e guarda devem ser regularizadas".

"Ter a guarda definida não significa autorização de realocação internacional", diz Furquim.

Pessoas acham que, se a mãe tem a guarda do filho, pode tirar a criança do país de residência habitual. Mas não pode Stella Furquim

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"É um detalhe importante e passaram por cima."

Brasileiras que tragam filhos para o Brasil sem autorização de realocação podem ser acusadas de subtração internacional de crianças e vê-los serem enviados de volta para o país onde viviam, como determina a Convenção de Haia.

Gambe e Revibra elaboraram propostas de revisão para a cartilha, publicadas em seus sites.

'Futuro aprimoramento'

Procurado pelo UOL, o Ministério das Relações Exteriores informou que registrou para análise e futuro aprimoramento do texto as propostas de revisão.

"A cartilha não ambiciona esgotar as questões abordadas, nem substituir a análise de casos específicos que não se enquadrem nas orientações gerais contidas no documento", informou, por meio da assessoria de imprensa.

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O Ministério das Mulheres informou, também por meio da assessoria de imprensa, que a pasta está em "diálogo com o Itamaraty e aguarda retorno das áreas técnicas".

Em sessão no Senado para discutir a Convenção de Haia em outubro de 2023, Michele Najara, coordenadora da Acaf (Autoridade Central Administrativa Federal), disse que o governo não utilizava mais o termo "sequestro" para se referir à retirada ilegal de crianças do exterior.

"'Sequestro' é um erro de terminologia jurídica. Então, vamos parar. Vamos fazer um exercício de não usar mais a palavra 'sequestro', porque tem um peso muito grave", afirmou, na ocasião.

Na cartilha do governo, a palavra "sequestro" aparece quatro vezes.

"O cuidado com a semântica pode evitar que mulheres sejam criminalizadas indevidamente como "sequestradoras" de seus próprios filhos", afirma o documento elaborado pela Revibra.

Outro ponto criticado pela Revibra é o trecho em que a cartilha orienta brasileiras a recorrer à linha 180 no WhatsApp para denunciar violências sofridas no exterior.

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Maria Badet, coordenadora da Revibra na Espanha, afirma que o serviço automatizado do número não oferece opção de resposta para quem está fora do Brasil.

Badet afirma que, ao pedir para falar com a atendente —como orienta o Ministério das Mulheres—, a usuária precisa contar a história toda para receber apenas o número do telefone de um consulado, um "número dificílimo de ligar". "Enfrenta burocracia e sofre revitimização", diz.

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