Militar reformado e crossdresser afirma ser hétero e lésbica em seus papéis
André Aram
Colaboração para Universa
01/02/2024 04h05
Em um bar com karaokê na rua Riachuelo, a poucos quarteirões dos arcos da Lapa, símbolo da boêmia carioca, Susan Marx adentra o espaço vestindo uma saia jeans comprida, salto alto, maquiagem suave e uma blusa marrom combinando com a cor do batom.
Os trejeitos são graciosos, ela mexe as longas madeixas escovadas da peruca enquanto cumprimenta a dona do bar, uma senhora de meia-idade de ascendência africana. Susan é uma crossdresser, em linhas gerais, alguém que veste roupas do sexo oposto. "É um homem que está confortável no papel masculino, mas que se sente feliz vestido como uma mulher", descreve em poucas palavras.
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Susan é o alter-ego de Lenival Dantas, 51, um militar reformado da Marinha que é sempre citado na terceira pessoa por ela, como se ele fosse outro indivíduo. Apesar disso, ambos se relacionam bem, sem conflitos, em que o lado masculino prevalece com mais frequência.
Como ela se relaciona? E ele?
Solteira, ela esclarece que só se relaciona com mulheres, levantando questionamentos sobre sua orientação sexual. "Já me relacionei com mulheres trans, mas com homens não consigo, não me sinto atraída por eles." Em seguida, explica que uma crossdresser pode ser heterossexual, bissexual ou homossexual.
Sobre Lenival, Susan afirma que ele é hétero, mas que já se relacionou com uma travesti no passado, como uma experiência, mas concluiu que seria melhor com mulheres apenas, dizendo que seu "outro eu" nunca ficou com homens.
Os mais de 30 anos na aviação naval e os dois casamentos heteronormativos, que resultaram em 16 anos de união, podem ter postergado uma vivência mais intensa como Susan, mas não seu surgimento, que aflorou pela primeira vez em público em 2008.
Sobre as ex-esposas e enteados, restou uma breve amizade: "A primeira mulher descobriu e a segunda já sabia, as duas eram evangélicas. Pessoal da igreja é complicado... Aí quando eu quis voltar a me montar, já estava no fim desse segundo casório, a partir daí, não me casei mais", conta ele, que também foi evangélico e não teve filhos.
Para a psicóloga Regiane Collares, da UFCA (Universidade Federal do Cariri), no Ceará, o crossdressing não está condicionado ao gênero assumido e muito menos ao desejo.
"A origem pode envolver várias coisas, desde um gosto estético em vestir roupas que correspondem ao gênero oposto, uma identificação com o feminino e até mesmo um posicionamento político com a intenção de transgredir padrões delimitados socialmente", explica Collares.
E, ao contrário do que muitos imaginam, não tem relação com a disforia de gênero, mas expressões de gênero, visto que a crossdresser gosta de 'estar' mulher (ao se montar), assim como também gosta do seu lado masculino.
Família evangélica e 'crossdresser de armário'
Nascido no bairro da Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro, Lenival foi criado em berço evangélico e se recorda que até os 16 anos a família tinha que ir assiduamente aos cultos na igreja.
Questionado sobre a reação da família sobre sua segunda identidade, ele conta que foi neutra, "meu pai e irmã sabem, minha mãe já é falecida. Eles não concordam, mas também não atrapalham. Como cuido do meu pai idoso, não posso sair vestida de mulher de casa, porque ele acha que os vizinhos vão falar", afirma o morador de São Pedro da Aldeia, município localizado na região dos Lagos, que costuma ir com frequência à capital para vivenciar sua personalidade feminina.
O número de crossdressers no Brasil ainda é indefinido, muitos praticantes são homens casados e com filhos, que na maioria das vezes costumam inverter os papéis apenas quando estão sozinhos em casa.
Susan as descreve como "crossdressers de armário". "Eles são pais, maridos, profissionais liberais, e não querem que ninguém saiba, então eles se montam no quarto, e quando notam que a família está chegando, se desmontam, e voltam a ser homens."
Segundo o psiquiatra Rodrigo Gasparini, da Santa Casa de São José dos Campos (SP), a crossdresser pode ter uma orientação sexual heteronormativa. O vestuário e os acessórios femininos não estão associados com quem ela se relaciona afetivamente e/ou sexualmente.
"Não é tão raro um indivíduo de sexo biológico masculino se identificar como crossdresser e heterossexual. A expressão de gênero não influencia diretamente a orientação sexual, ele pode se interessar exclusivamente por uma pessoa do sexo oposto", esclarece Gasparini.
Discrição, preconceito e banheiro feminino
A mulher de 1,75 m (com salto alto) afirma que poucas vezes passou por situações envolvendo preconceito. Para ela, a crossdresser quer andar despercebida, como se fosse uma mulher comum, sem chamar atenção.
Em suas andanças diurnas, Susan foi a um shopping na Barra da Tijuca e utilizou o banheiro feminino sem ser incomodada. Em outra ocasião, ao lado de amigas cisgênero, foi a praia de Copacabana, onde ousou em usar um biquíni, sem importunação.
"Fui lá porque só mulher trans vai à praia e usa biquíni. Não tenho peito, não tenho bunda de verdade, isso aqui é só enchimento, queria provar que uma crossedresser pode ir sim", declara, dizendo que foi bem tratada pelos garçons do quiosque.
No entanto, sua presença não passou despercebida quando foi a uma praia em Cabo Frio, na região dos Lagos. Segundo ela, foi alvo de olhares de reprovação de alguns banhistas, mas a pior experiência aconteceu em uma casa noturna 'normal' em São Paulo, quando levou uma cotovelada proposital de uma mulher, que visivelmente estava incomodada com sua presença.
Em linhas gerais, Susan admite que foram poucas as ocasiões desagradáveis, segundo ela, geralmente as pessoas lidam com naturalidade, inclusive sobre o uso do banheiro feminino. "A crossdresser não fica resguardada do preconceito, o que uma mulher trans pode sofrer nas mãos de um homem, uma crossdresser também pode."
Somos uma 'travesti part-time' (meio período), a gente não fica como mulher o tempo inteiro; a gente se caracteriza.
Sapo, princesa e abóbora-fobia
Assim como no universo LGBTQIA+, o meio crossdresser também possui seus termos típicos. Susan se recorda do seu début aos 37 anos, quando foi a um evento devidamente produzida (e maquiada) na quadra de samba da Unidos da Tijuca.
No dia seguinte, teve uma crise de choro, ou como ela mesmo relata a Universa, uma abóbora-fobia, uma referência ao conto da gata-borralheira.
"Quando me vi no espelho pronta, me senti realizada, uma mulher linda", para horas depois (desmontada) bater uma espécie de crise de identidade.
Era um sentimento de falta, ter que se desfazer de tudo, a gente fica feliz quando se torna mulher, mas aí tem que voltar a ser homem de novo; a gente vira princesa e depois volta a ser sapo.
No 'dicionário crossdressing', quando se está como homem é sapo, e como mulher é princesa.
Todavia, Susan descarta qualquer possibilidade de se tornar uma mulher trans e explica seus motivos. "Nasci homem, e sinto que vou morrer homem. Tenho uma amiga trans que às vezes me conta os problemas dela com o uso de hormônios, muitos danos à saúde." Ela conta também que muitas mulheres trans começaram como crossdresser.
Cantadas a uma mulher conservadora
Sensualidade não faz parte da conduta de Susan, que se descreve como uma mulher dona de um estilo conservador (sem nenhuma conotação política). Maquiagem e roupas chamativas somente quando se apresenta nos palcos cantando ou em concursos de beleza.
Vaidosa, usa cremes no rosto, faz dieta e depilação a laser nas pernas. Ela também não força uma voz feminina, apenas tenta falar mais pausadamente e em um tom mais baixo.
Cantadas explícitas também não a atraem, e reclama sobre as propostas sexuais que às vezes recebe: "Crossdressing não é sinônimo que estamos disponíveis para os homens, muitos acham que só por estarmos vestidos de mulher que estamos livres. Uma vez um rapaz me disse: 'Não entendi, tu se veste de mulher e não gosta de homem?'". Para em seguida ressaltar que a ala masculina não tem chance com ela: "A Susan é lésbica e o Lenival hétero".