Indígena, trans e venezuelana: 'Vim ao Brasil sem dinheiro para comer'
Paola Abache, 23, deixou a Venezuela há cinco anos com um propósito: ter a liberdade de ser quem ela é. Indígena da etnia Warao, Paola atualmente vive em Boa Vista, no abrigo Waraotuma a Tuaranoko, que significa "local onde descansam os Warao", em português.
Em situação de refúgio no Brasil, ela venceu o concurso de miss trans em Roraima no ano passado e agora nutre o sonho de construir uma carreira em direitos humanos, inspirada por líderes indígenas como Joênia Wapixana. A Universa, ela contou sua história.
'Estava em um armário'
Decidi vir para o Brasil porque na Venezuela não há normas. Ser uma garota trans, ou gay, ou lésbica é muito difícil. As pessoas são muito discriminadas. Na Venezuela, já sentia que era trans, mas não demonstrava. Era escondido, estava em um armário. Mas queria sair. Quando decidir vir ao Brasil, também decidi que demonstraria quem eu sou.
Mudei meu nome, deixei meu cabelo crescer, comecei a me maquiar e a me vestir de mulher. E fui crescendo.
Saí em 2019, sozinha. Buscava uma vida melhor e tinha alguns amigos vivendo por aqui. Estava em contato com esses amigos, e falava com eles, porque a situação de Venezuela já estava um pouco mal. Mas não foi fácil minha viagem.
Naquela época, na Venezuela, vendia bolsas para comprar minha passagem. Consegui o dinheiro e vim. Passei duas noites e dois dias viajando. Tinha dinheiro para viajar, mas não para comer. Minha meta era só chegar ao Brasil.
'Tenho família aqui'
Chegando aqui, reencontrei amigos. Foi maravilhoso. Pensei que estaria sozinha, mas vivi como em uma comunidade. Aqui tem bastantes indígenas, conhecidos, alguns estão em família. Minha própria família está na Venezuela, mas tenho uma família aqui e estou vivendo bem, feliz.
Não falei nada para a minha família na Venezuela [sobre a transição], mas tinha Facebook e publicava as fotos com as mudanças e eles me viam. No ano passado, voltei para lá e fui como sou. Cheguei lá e foi tudo bem. Pensei que eles não me aceitariam, mas isso não aconteceu.
'Muitos sonhos para realizar'
Sinto que nasci com o dom de ser modelo. Desde criança já brincava com isso. Quando vim para cá, isso já estava na minha cabeça. Comecei a seguir indígenas que tinham participado do concurso e a acompanhá-las.
Um dia, entrei em contato com uma delas e disse que queria ser como elas, que também queria participar de concursos. Uma delas me respondeu e me orientou para me inscrever. Me animei!
Mas depois fiquei pensando: será que vão me aceitar, mesmo sendo uma migrante venezuelana e não tendo nacionalidade brasileira? Fiquei um pouco nervosa. Passaram-se alguns dias e eu estava confirmada. Então, veio outro desafio: conseguir patrocinador para me ajudar com as roupas.
Tentei pelas redes sociais, mas não consegui. Aí decidi lutar sozinha. Como queria muito participar, fiz tudo o que era possível. Foram duas semanas de preparação. Foi tudo muito rápido e quando chegou o dia do concurso, venci. Não acreditava que tinha conseguido. Foi muita emoção.
Esse prêmio representa muitas coisas para mim. Muitas pessoas se questionam: por que uma miss vive em um refúgio? Por que não tem sua própria casa? Mas isso não me importa. Não me importa a riqueza, ou viver em um refúgio. O importante é que eu me sinta feliz, que eu demonstre meu talento e minha humildade. Estou vivendo com minha comunidade indígena porque sou indígena. E é isso que me representa.
Agora, uma das coisas que quero fazer é me formar, entrar na faculdade de direito para trabalhar com direitos humanos. Também quero seguir minha vida fazendo vídeos nas redes sociais —quero falar de onde vim e como comecei tudo. Tenho ainda muitos sonhos para realizar."