Amigas da igreja, elas se apaixonaram: 'Casei com homem, chorando por ela'
Victória Gearini
Colaboração para Universa
21/02/2024 04h00
O relacionamento entre a advogada Bruna, 37, e a administradora Flávia, 46, começou como uma amizade dentro da igreja. Flávia Maria se casou com um homem, mas o sentimento por Bruna Andrade falou mais alto. Hoje, elas comemoram oito anos e meio de relacionamento e quatro anos de casadas. A Universa, elas contam sua história.
Da amizade à história de amor
Flávia e Bruna se conheceram enquanto frequentavam uma igreja presbiteriana em Belo Horizonte, em 2009. O encanto de Flávia por Bruna foi imediato.
Ela mexeu muito comigo pela beleza dela e o jeito de se expressar. Foi um momento muito mágico, mas eu logo falei para mim mesma que estava errado e que era pecado.
Flávia
Bruna, por sua vez, lembra que só reparou em Flávia 15 dias depois, em uma reunião de jovens da igreja.
Lembro que não gostei muito do jeitão dela, meio autoritário, meio sem papas na língua. Mas também lembro de olhar para ela e pensar: 'que menina linda!'
Bruna
Com o passar do tempo, as duas se aproximaram. Recém-formada, Bruna pediu indicação de trabalho para Flávia. E a administradora indicou a amiga para ser advogada de seu pai. E ainda fez um alerta:
"Te indico, mas não vai namorar com o meu pai", lembra, aos risos.
Cinco anos se passaram e as duas se tornaram melhores amigas. Elas chegaram a namorar homens, mas os relacionamentos não vingavam. Flávia também chegou a confidenciar à amiga que já tinha se relacionado com mulheres.
Viagem e saudade
Em 2014, Flávia foi morar em Moçambique, na África —e, então, Bruna percebeu seus verdadeiros sentimentos pela amiga.
Fiquei meio incomodada e me perguntando por que ela estava fazendo tanta falta. Foi quando entendi que, na verdade, o sentimento não era só de amizade, mas também de amor.
Bruna
Bruna completa: "A Flávia é meu primeiro e único relacionamento com mulher e, na época, eu não entendia bem o que isso significava. Depois que a gente se entende como mulher lésbica, começa a olhar para trás e ver que talvez gostasse daquela amiga, mas era algo tão inimaginável que entendíamos como amizade."
'Queria me ver toda hora'
Durante a estadia em Moçambique, Flávia conversou com a então amiga pouquíssimas vezes devido ao fuso horário. Mas, ao voltar ao Brasil, percebeu mudanças em Bruna.
"Ela estava muito diferente, querendo me ver toda hora, perguntando quando iríamos sair. Só que depois da minha volta, fiquei noiva do meu então namorado e começamos a organizar o casamento", diz Flávia.
Nesse momento, começamos a conversar sobre relacionamento homoafetivo, sobre os sentimentos dela por mim. Mas toda hora que a Bruna tentava falar alguma coisa sobre o que estava sentindo, eu falava que era curiosidade e que iria acabar a amizade. Ela tentou várias vezes falar comigo, mas nunca permiti que ela concluísse a fala, até que marquei meu casamento com o rapaz.
Flávia
'Eu não tinha coragem'
Uma semana antes do casamento, Bruna preparou uma despedida de solteira para Flávia. Com outras duas amigas, elas curtiram a noite em um bar em Belo Horizonte. Bruna, então, criou coragem e se declarou para a amiga que estava prestes a se casar.
Foi quando ficamos pela primeira vez, uma semana antes do meu casamento. Conversamos muito, mas não tive coragem de não me casar, por fatores religiosos e familiares. Chorei muito, porque queria viver aquele relacionamento com ela, mas não tinha coragem.
Flávia
Nos preparativos para o casório, o pensamento estava em Bruna. "Minha maquiagem teve de ser feita duas vezes, porque eu chorei, chorei, chorei... e borrou tudo", lembra Flávia.
E, no momento em que estava entrando na igreja para me casar, sabia que a Bruna estava me olhando porque procurei o olhar dela e encontrei. Então, pensei: até quando serei infeliz?
Flávia
Bruna ficou na porta da igreja. E concluiu, naquele instante, que Flávia tinha feito sua escolha.
Quando a Flávia entrou vestida de noiva no casamento, o sentimento foi de tristeza porque tinha entendido que ela tinha tomado uma decisão, eu ia respeitar e não iria insistir em um relacionamento com uma pessoa casada.
Bruna
No dia seguinte, elas se encontraram e tiveram uma última conversa. Bruna estava decidida a colocar um ponto final na relação, mas Flávia insistiu em conversar depois que voltasse da lua de mel.
"Voltei da lua de mel e fiquei em Belo Horizonte uma semana. Depois, fui para Moçambique [a trabalho]. Meu então marido ficou no Brasil. Nosso combinado era que eu voltaria a cada seis meses", explicou a administradora.
Em Moçambique, Flávia sentia saudades de Bruna todos os dias. E, então, resolveu seguir o seu coração: largar o trabalho em outro país e terminar o casamento que tinha acabado de acontecer.
Voltei ao Brasil 40 dias depois. Liguei para a Bruna e falei para ela pegar um avião para São Paulo, para resolvermos nossa vida. Falei que iria me separar e que também não voltaria mais para Moçambique, que queria viver esse relacionamento com ela no Brasil. Ficamos em São Paulo 15 dias, sem ninguém saber que estava no país. Me separei do meu ex-marido e começamos a morar juntas.
Flávia
Flávia conta que o então marido não entendeu bem o motivo da separação, em um primeiro momento. "Falei com ele que veio à tona um passado meu e que não estava preparada para compartilhar nada naquele momento." Depois de um tempo, tudo ficou mais claro entre os dois —e ele reagiu bem.
Nos seis meses seguintes ao reencontro, Flávia e Bruna não conviveram com ninguém —elas só queriam ficar a sós e faziam tudo juntas.
Depois de um tempo, Flávia apresentou a companheira aos amigos e família. "Eles receberam muito bem." Bruna, por sua vez, diz que nunca fez um comunicado oficial —apenas começou a levar a Flávia aos lugares. "Tudo no seu tempo. Respeito o tempo das pessoas, mas também exijo respeito em relação ao meu relacionamento. Onde não cabe a Flávia, não me cabe também."
Vejo que hoje sou muito mais feliz casada com uma mulher do que antes quando ficava lutando contra meus desejos.
Flávia
Impacto social
Do amor das duas surgiu, em 2018, a empresa Bicha da Justiça, voltada para apoiar pessoas da comunidade LGBTQIAP+.
"A partir do desenvolvimento de tecnologia, de toda a nossa habilidade, de tudo o que já estudamos, queríamos gerar informação e conscientização, tanto do público LGBTQIAP+ quanto da sociedade como um todo, sobre a existência desses direitos", explica Bruna.
A Bicha é uma empresa de educação, com uma série de programas educacionais, para advogados ou empresas. Além disso, prestamos consultoria jurídica para o público LGBTQIAP+, entrando com demandas jurídicas como alteração de nome, liberação de cirurgias, registro duplo de parentalidades, questões referentes à LGBTfobia, entre outros.
Bruna
Elas explicam que o projeto surgiu de uma necessidade de gerar mudanças. Assim como foi libertador para elas assumir o sentimento uma pela outra, as duas lutam para que outras pessoas possam fazer e sentir o mesmo.