Isabelita dos Patins: 'Meu sonho seria rever o FHC, ele mudou minha vida'
André Aram
Colaboração para Universa
18/03/2024 04h05
O destino de Jorge Omar Iglesias, 74, sempre esteve ligado ao do Brasil, como uma predestinação. Aos nove anos, o argentino ganhou um postal do Rio de Janeiro de seu pai, e ali surgiu seu fascínio pelo país.
Ainda adolescente, trabalhou no consulado do Brasil na Argentina. Todos os caminhos o guiavam para solo brasileiro, e em 1970, aos 22 anos, ele veio para morar no Rio. No ano seguinte, surgiu a sua personagem icônica: Isabelita dos Patins, mas a fama nacional só veio em 1993, quando quase deu um beijo no rosto de Fernando Henrique Cardoso. Ali sua vida mudou para sempre.
Embora nascido na Argentina, seu alter ego é brasileiro, e ambos declaram seu amor pela Cidade Maravilhosa. Com 53 anos de carreira celebrados recentemente no Carnaval, Isabelita revisita seu passado, suas memórias e seus desafios, como a superação de uma relação abusiva e a consagração como um símbolo da irreverência carioca.
"A Isabelita surgiu no Carnaval de 1971 no Rio de Janeiro, mas o Jorge veio antes, ainda na Argentina. Minha mãe deixou os quatro filhos com meu pai e foi embora, fomos criados por ele em Rosário.
Certa vez, papai deu um postal de países diferentes para cada filho, o meu era do Brasil, ali nasceu minha paixão por este lugar, na ocasião ele disse: 'Se conforme olhando o postal, somos pobres e você nunca vai conhecer o Brasil'.
Por ironia do destino, o ginásio foi em uma escola chamada Estados Unidos do Brasil, e lá aprendíamos sobre a cultura brasileira. Aos 14 anos, já trabalhava servindo café no Consulado do Brasil, e todos sabiam da minha admiração por essa terra. Em uma ocasião o cônsul me disse: 'Quando fizer 18 anos, vou te dar uma viagem ao Rio de Janeiro por uma semana', e assim aconteceu.
A primeira vez aqui foi em 1966. Fiquei encantado com tudo, mas tinha que retornar, fazer o alistamento militar, senão seria um desertor.
Vim para morar no Rio em 31 de julho de 1970, claro que existia preconceito, tinha um corre da polícia, mas para mim foi muito tranquilo. Quando cheguei em frente ao Copacabana Palace, existia a 'bolsa de valores', era um reduto gay, na praia vi pessoas de tapa-sexo, seios de fora, se abraçando, pensei se as bonecas já estão assim agora, quem dirá no Carnaval.
Sou gay desde os nove anos, havia muita discriminação na Argentina, era muito triste, confesso que comecei a ser feliz aqui.
No Carnaval de 1971, fui a praia de Copacabana, nunca havia me vestido de mulher, e na Argentina seria morto se fizesse isso. Levei uma bolsa, e atrás de um coqueiro troquei de roupa, não sabia me maquiar, então usei uma pomada (Minancora) e fiz duas bolas nas bochechas.
Ficou horrível, parecia a Vovó Mafalda, mas patinava muito bem. Saí patinando pela avenida Atlântica, as pessoas ficaram enlouquecidas. Aí surgiu uma repórter chamada Glorinha Pereira que perguntou meu nome, ela então disse: 'Como assim Jorge? Se você tá meio tubarão, meio sereia? E esse sotaque?'. E em seguida falou: 'Você vai se chamar Isabelita dos Patins', em referência a Isabelita Perón.
1993: um ano de glórias e desafios
A Isabelita é uma personagem que dá alegria às pessoas, desde uma criança a um senhor de 90 anos, essa purpurina encanta todo mundo, mas o reconhecimento mesmo veio em 1993, aliás um ano de muita alegria e tristeza também.
Havia terminado um relacionamento abusivo de 11 anos. Após ele me ameaçar com uma faca, fui a delegacia e o denunciei. Ele foi chamado e disse ao delegado que quando bebia uma garrafa de 'caipirinha' ficava daquele jeito.
Ele foi aconselhado a sair de casa imediatamente, mas recusou-se dizendo: 'Moro com ele há 11 anos, como vou pra outro lugar?'.
Fui morar com um amigo até ele achar um novo local para viver, antes de sair, separei nossas coisas, e as minhas guardei em um quarto com chave no imóvel. Nesse meio tempo, paguei todas as contas da casa e a prestação dela, quando finalmente retornei, quase um ano e meio depois, e abri a porta, não havia nem o trilho da cortina.
Ele levou tudo, inclusive as minhas coisas. Só restou o telefone. Dormi por meses no chão, sobre um papelão. Havia perdido tudo. Claro que isso me abalou um pouco, mas superei, e não me fez perder o sentimento por uma nova pessoa, mas tive muito trabalho após isso, então meu novo amor foi trabalhar como Isabelita dos Patins.
"O beijo que mudou a minha vida"
Paralelo a Isabelita, sempre trabalhava como Papai Noel animando festinhas de crianças; mas no fim daquele ano, o telefone tocou, era uma boate em Copacabana me convidando para recepcionar os convidados. Lá estava eu na entrada da casa noturna patinando, e logo surgiu um grupo de pessoas, uma delas era o Fernando Henrique Cardoso, não sabia quem era.
Fui até ele, que gentilmente deixou fingir que me daria um beijo, e nisso choveram flashes de fotógrafos. Esse beijo mudou a minha vida. No dia seguinte, fui primeira página de jornais e revistas. Se abriram muitas portas, fui a lugares que quase ninguém foi, aí entrei realmente na sociedade. Dez meses depois, FHC foi eleito, e Isabelita continuou famosa.
Certa vez, a Vera Loyola [socialite carioca] me contratou para receber 200 amigas em seu aniversário, quando elas me viram ficaram enlouquecidas: 'Vera, como você conseguiu trazer a Isabelita que beijou o FHC?' E ela respondeu: 'Paguei o cachê e ela veio, agora ela trabalha assim'.
Milhões de portas se abriram, casamento, divórcio, batismo de cachorro, foi uma loucura. Meu sonho é reencontrá-lo, estar diante dele como Jorge, apertar a sua mão e agradecê-lo, porque graças a ele hoje tenho o meu apartamento, quem sabe um dia. Embora o Jorge seja tímido e reservado, a Isabelita é irreverente, ela quer dar pinta, quer soltar purpurina, 'ti meti' [bordão].
Tenho saudades do passado, havia lugares maravilhosos, nós vivemos os anos dourados nos anos 1980 e 1990, boates, cinemas, teatros, mas tudo se foi. As boates fecharam, quem faz show só está fazendo em saunas, e é uma pena porque os cachês são mínimos.
Quem trabalha na noite tem que ter muito amor por essa arte. Falo para a juventude que vivi os melhores anos, mas acabou. Lido bem com a maturidade, claro que a idade chega, você não tem mais aquele pique, mas sabe que quando começo a me maquiar me sinto aquela bonequinha de 35 anos. Me sinto bem, e envelhecer é a vida.
Barraca na feira de antiguidades
Trabalhei durante anos na feira do Lavradio [centro do Rio], mas com a pandemia acabou tudo. Fiquei muito triste, era um lugar maravilhoso. Aí o rapaz que cuida da feira de antiguidades da Praça 15 me deu uma barraca, nela vendo minha boneca, relógio, caneca e outras coisas personalizadas.
As pessoas são carinhosas quando descobrem que sou a Isabelita. No início, ia como ela, mas tinha que acordar às 3h da manhã para me maquiar, peruca e a roupa colocava ali mesmo na feira, e a Isabelita surgia. Mas com esse calor passei a ir de Jorge.
Às vezes chegam 30 pessoas pedindo foto, é ótimo, aí digo 'claro, mas você pode comprar um ímã de geladeira de R$ 2?' E a pessoa não tem, mas tá segurando uma cerveja que pagou R$ 10. Isso me cansou um pouco, imagine fazer 30 fotos e não vender nada, mas nunca fui para a feira triste.
Outro dia veio um senhor, ele olhou a minha foto e disse 'como ela era bonita' e que a conhecia da TV, quando disse ser a Isabelita, ele me deu um abraço, quase chorou de alegria. Todos que vão à barraca tem um carinho por mim.
Recentemente, foi um casal, viu a foto e disse 'olha a Isabelita, ela já morreu né?' Achei muito engraçado. Quando apareço em uma novela, na semana seguinte as senhorinhas vêm me visitar na barraca. A feira tá sendo maravilhosa para mim, porque é uma forma de ter outra renda.
Cidadão honorário
Sempre digo, sou brasileiro naturalizado, cidadão carioca e embaixador do Rio de Janeiro. Receber o título de Cidadão Honorário do Rio era um sonho. São 53 anos de carreira, sempre bem recebida em todos os lugares, só tenho boas lembranças. Me sinto realizada e orgulhosa por ser a cara do Rio e a alegria do Carnaval.
Quando olho para trás, vejo de 1970 pra cá, porque a minha infância foi triste, cheguei aqui com a cara e a coragem, nunca pensei em ser uma personalidade.
Jorge e Isabelita são muito felizes, a gente sonha, luta e a colheita um dia vem, o que a gente faz por nós morre conosco, mas o que a gente faz pelos outros fica para a eternidade.