'Meus dois filhos foram mortos pelo próprio pai como uma forma de me punir'
A psicóloga Jane Soares da Silva, de 40 anos, perdeu os dois filhos, de 9 e 6 anos, mortos pelo ex-marido em 2019, em São Paulo. A Universa, ela conta como tudo ocorreu e por que luta pelo fim da lei de alienação parental.
- Aviso: este texto contém relato sensível, que pode servir de gatilho.
'Convivência começou tranquila'
Ele matou as crianças por vingança: foi uma forma de me punir por não querer ficar com ele. E deixou carta dizendo ter planejado tudo desde 2014.
Tudo começou quando conheci meu ex-marido, por volta do ano 2000 e, após quatro anos, iniciamos nosso relacionamento. Namoramos um tempo antes de decidirmos nos casar e ficamos juntos por 11 anos.
A convivência, no início, era tranquila, apesar de alguns comportamentos estranhos dele, como desaparecer sem dar notícias por dias.
Em 2009, enquanto construíamos nossa casa, engravidei de Lucas. A gestação foi marcada por indiferença da parte dele, que não demonstrava interesse nem mesmo nas necessidades básicas do bebê.
Após o nascimento de nossa filha, Mariah, as coisas pioraram. Ele se tornou grosseiro, não providenciava o essencial para a casa e ameaçava constantemente, inclusive se recusando a levar nossa filha ao médico quando ela estava doente.
Suas ameaças se intensificaram quando decidi voltar a trabalhar, colocando obstáculos para minha autonomia.
As ameaças se tornaram constantes, chegando ao ponto de me ameaçar de morte e de tirar nossos filhos de mim. Com medo, acabei cedendo e permanecendo ao seu lado, mas as ameaças persistiram, o que me levou a buscar refúgio trancada em um cômodo com meus filhos.
A situação se tornou insustentável e, em dezembro de 2015, decidi sair de casa. A partir daí, ele intensificou suas perseguições, tentando tirar a guarda das crianças de mim e me acusando de alienação parental. Ele não lidou bem com a separação, não aceitava.
O sistema Judiciário pouco fez para me proteger e aos meus filhos, ignorando minhas denúncias e pedidos de ajuda.
Vivi sob constante tortura psicológica e medo, sem saber como sair dessa situação e, apesar de todas as tentativas de buscar ajuda, as autoridades não agiram.
Com a ajuda dos meus pais, conseguimos viver durante três anos em paz, na casa deles, longe do meu marido. Mas ele conseguiu convencer a Justiça de que eu não era uma boa mãe, usando a lei da alienação parental. Todas as minhas tentativas de obter medidas protetivas foram em vão e tive um pedido negado em 2016.
No Carnaval de 2019, ele apareceu para buscar as crianças, para passar o feriado com ele. O Lucas desenhava na mesinha de centro e a Mariah brincava, correndo pela casa. Parecia tudo bem, era sexta-feira.
Ele, como sempre, demorou para aparecer, nunca cumpria o que prometia. E levou as crianças, com a promessa de que as traria na segunda-feira, mas eu nunca mais eu as veria com vida novamente.
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Quero receber'Entrei em desespero'
Liguei no sábado e no domingo para checar se estava tudo bem e estava. Na segunda-feira, ele não me respondia, não atendia ao telefone e entrei em desespero. Então, liguei para a irmã dele.
Horas depois, recebo uma mensagem de texto avisando que o Lucas estava morto. Eu estava no ônibus, indo para a casa dele. Surtei, caí no chão do ônibus, gritando e chorando, fui acudida por desconhecidos e levada a um hospital.
A Mariah chegou a ser acudida com vida, foi levada ao hospital, mas não resistiu. Ele atirou contra meus filhos e depois se matou.
Hoje faço tratamento psicológico, com acompanhamento de um psiquiatra, e tento ocupar meus dias com o trabalho.
Meus pais, minha família, meus amigos, muita gente me ajudou a lidar com a dor que é perder os filhos. Por isso, luto contra a lei da alienação parental, que fez isso comigo e ainda faz com diversas mães."
Alienação parental
A lei da alienação parental foi criada para coibir situações em que um dos genitores visa a afastar o outro da convivência com os filhos. A legislação foi sancionada em 2010, com o objetivo de proteger crianças e adolescentes.
Hoje, é alvo de críticas por instituições e parlamentares, que argumentam que há uso deturpado por parte de pais acusados de abusos. Quem critica a legislação diz que ela é usada para proteger homens acusados por suas ex-companheiras de violência doméstica.
Entre 2018 e 2022, mais de 23 mil novos processos anuais com base nessa lei foram instaurados no país. As mães são as principais acusadas. Hoje, três projetos tramitam no Congresso Nacional pedindo a revogação da norma.
O que dizem especialistas
Especialistas ouvidos por Universa acreditam que há distorções na interpretação e na forma como a lei é cumprida. Eles apontam que a legislação deveria ser aprimorada —para evitar falhas.
Esse caso gera comoção e revolta, mas deve-se analisar as falhas ocorridas, que aparentemente foram muitas por parte do Judiciário, Ministério Público, peritos, para evitar que se repitam.
Aline Avelar, especialista em direito das famílias e sucessões
O sistema Judiciário muitas vezes não reconhece o perigo real que esses pais representam e tende a favorecê-los, ignorando os riscos para a criança. Isso pode levar a situações perigosas, como abuso sexual ou até a morte da criança. Enquanto o Judiciário não reconhecer e agir sobre o fato de que agressores nunca serão bons pais, o ciclo de abuso e violência contra mães e crianças continuará.
Vanessa André, especialista em direito da família
Nos parece clara a configuração de um choque de normas, cabendo ao Judiciário --em cada uma de suas especialidades (violência contra a mulher e de família)-- decidir como aplicar ambos os normativos, protegendo a mulher, sem deixar de garantir, quando for possível, o direito à convivência dos filhos com sua família.
Ana Luíza Lopes Lafayette, especialista em direito da família
A relação conjugal se distingue da relação parental. Ainda que a relação do casal se encerre em conflito, o vínculo de cada um deles com os filhos comuns para sempre prevalecerá. O direito, então, deve regulamentar a saudável convivência entre os genitores e seus filhos, visando o melhor interesse das crianças.
Marco Antonio Alonso David, especialista em direito da família
Violência contra a mulher: como procurar ajuda
Mulheres que passaram ou estejam passando por situação de violência, seja física, psicológica ou sexual, podem ligar para o número 180, a Central de Atendimento à Mulher. Funciona em todo o país e no exterior, 24 horas por dia.
Procure ajuda
Caso você tenha pensamentos suicidas, procure ajuda especializada como o CVV (www.cvv.org.br) e os Caps (Centros de Atenção Psicossocial) da sua cidade. O CVV funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados) pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil.
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