'Sou intersexo, cirurgia me mutilou e hoje luto para que seja proibida'
Victória Gearini
Colaboração para Universa
22/03/2024 04h00
A jornalista Céu Ramos de Albuquerque, 32, foi reconhecida como pessoa "intersexo" na certidão de nascimento. Sua jornada desde a infância, porém, foi marcada por violências.
Todo processo sempre foi muito doloroso para mim. A cada cirurgia eu saía mais mutilada, violentada e com cicatrizes.
Condição genética rara
Céu tem Hiperplasia Adrenal Congênita (HAC) —uma condição genética rara que interfere nas glândulas suprarrenais. Isso afeta os hormônios sexuais e a formação da genitália externa.
Ela sabe, desde criança, que tem HAC, mas foi apenas há 6 anos que conheceu o termo intersexo. Então, passou a entender mais sobre o assunto e reconhecer as violências que viveu.
Pessoas intersexo nascem com características sexuais que não se encaixam nas noções binárias típicas de corpos masculinos ou femininos —explica a ONU.
Violências físicas e psicológicas
Por ter uma genitália ambígua, foram feitos exames para identificar sua estrutura de cromossomos —o que levou ao registro inicial feminino.
Quando ainda era um bebê, Céu passou pela primeira cirurgia em sua genitália. A operação causaria marcas profundas até hoje. Ela diz que só teve conhecimento sobre o ocorrido quando tinha 10 anos, durante uma consulta médica.
Na época, descobri de forma brutal. Uma médica chegou e disse: 'Você tem uma doença e é incurável. Tem de tomar medicação, senão morre e não poderá ter filhos'. Me lembro de sair transtornada e chorando do hospital. Era uma criança de 10 anos recebendo essa informação.
Hoje com mais conhecimento, Céu rebate a abordagem médica. "Tomo medicação, mas sei que não morro se parar de tomar. É só para não deixar de ter o controle hormonal. Além disso, tenho um sistema reprodutor completo, tenho só uma disfunção hormonal."
Céu chegou a ter depressão na adolescência e lembra que se sentia culpada. "Essas cirurgias danificam o psicológico e o físico das pessoas." Ela questionava a necessidade das cirurgias por pressões estéticas em crianças. E diz se sentir violentada e mutilada desde a infância.
O que gira em torno dessas violações é a estética binária de que aquele corpo precisa se adequar ao gênero no qual foi designado. Então, para eles, tudo bem fazer uma vulva numa criança, porque é feio, segundo os médicos, uma menina ter um clitóris gigante. Não é só um abuso psicológico, mas também físico.
Mutilação e cicatrizes
Aos 17 anos, Céu foi submetida a outra cirurgia. Na ocasião, os médicos tentaram exteriorizar o que sobrou de seu clitóris, pois a primeira cirurgia a que foi submetida na infância tinha mutilado algumas estruturas da genitália. A ideia dessa e das cirurgias dos anos seguintes era proporcionar mais qualidade de vida, mas não foram bem-sucedidas.
A cada vez que eu fazia uma cirurgia, mutilavam mais parte da minha vulva. Fui ficando despedaçada ao longo desse tempo. Hoje, não sobrou quase nada. Essas [últimas cirurgias] eu que busquei, mas tudo porque a primeira não era para ter acontecido.
A pernambucana diz que abusos e violências foram recorrentes em sua trajetória. Na época, Céu confrontou o médico, mas entende que, devido à idade e pouca experiência, o caso não foi adiante.
Quando tinha 17 anos, fiz uma cirurgia de abertura da entrada da vagina. Com 19, fiz outra cirurgia, mas o médico, sem minha permissão, fechou mais a estrutura que tinha sido aberta na primeira, porque, segundo ele, mulher lésbica não precisa ter vagina larga. Depois disso, desenvolvi um monte de problemas, como fibrose e fortes dores.
Ativismo e mudança no registro
Em julho de 2021, ela iniciou seu processo de reconhecimento como "intersexo" na certidão de nascimento —o registro foi obtido no dia 7 deste mês.
Ela vê isso como uma conquista para a dignidade e direitos humanos de pessoas intersexo. Também espera que, em um futuro próximo, as cirurgias sejam extintas.
Num futuro muito breve, espero que o Brasil proíba cirurgias intersexo em todo o território nacional e possa resguardar a integridade dessas crianças e famílias, com o melhor acolhimento possível.
A conquista de mudança na certidão também foi celebrada pela Abrai (Associação Brasileira Intersexo).
É o reconhecimento de que esses corpos existem e que devem ser protegidos, ter sua integridade respeitada tanto física como psicologicamente. Essa retificação traz todo esse debate da importância de reconhecer que existem corpos intersexo. E esse reconhecimento faz com que, automaticamente, se gere debate sobre e que, principalmente, se preserve a existência destes corpos, dessas pessoas e da sua saúde.
Thais Emilia, presidente da Abrai, em entrevista ao UOL no dia 9 de março
O que é ser intersexo?
Intersexo, segundo a Abrai, é a pessoa cujo corpo varia do padrão culturalmente tido como masculino ou feminino, "no que se refere a configurações dos cromossomos, localização dos órgãos genitais e a coexistência de tecidos testiculares e de ovários".
O reconhecimento da intersexualidade pode acontecer já no nascimento, com a percepção de uma genitália atípica, explica a Abrai em seu site. As variações, no entanto, podem ser percebidas somente na puberdade ou nunca serem conhecidas. No mundo, existem cerca de 1,7% pessoas que se identificam como intersexo.