Ela se descobriu mulher trans após anos de casamento: 'Desmontei armadura'
A história de Fe Maidel, 58, e Cida Vasconcelos, 57, é cheia de descobertas ao longo de 20 anos de relacionamento. O casal se repaginou com a transição de gênero de Fe, que se descobriu uma mulher trans.
'Uma tristeza eterna'
Na infância, Fe era Fernando, nome que a comunidade trans considera "morto", mas que Fe não fez questão de ocultar à reportagem.
Fe nasceu e foi criada em São Paulo, em uma família judaica. A juventude foi marcada pela pressão da família para agir como achavam que garotos de sua idade deveriam se comportar.
Fe obedecia, sem muitas opções, mas sempre com dificuldade de se encaixar nos padrões. Seus relacionamentos, baseados nas expectativas dos outros, foram vivenciados com mulheres.
Ainda jovem, observava a cena LGBT da época —a ditadura militar ainda estava fresca na memória das pessoas, a repressão contra o que era considerado "subversivo" persistia e a Fe ainda não havia encontrado espaço para surgir.
Grande parte das travestis tinha de ir para a rua ganhar a vida ou perdê-la. Não tinha discussão. Travestis iam em cana só por estarem na rua e não havia espaço que não gerasse adoecimento. Nem para pensar no assunto sem perder tudo. Fiz terapia a vida toda na busca de respostas, uma tristeza eterna.
Fe Maidel
Sintonia imediata
Cida surgiu na vida de Fe em 2003, ainda antes de sua transição. Recém-separada do segundo casamento, ela sentiu uma "sintonia" imediata.
Estava em um processo de busca do meu sonho de ser mãe e decidi fazer isso sozinha, mas 'esbarrei' com o Fernando naquele momento. Não foi amor à primeira vista, mas foi algo muito rápido e intenso. Temos muitas semelhanças e nos sintonizamos em quase tudo. Sempre nos divertimos muito e nos apoiamos em tudo.
Cida Vasconcelos
O casal oficializou o matrimônio em abril de 2005 e passou por lutos difíceis. Foi na festa de casamento que Cida, grávida de quatro meses, começou a sentir contrações. Ela teve de deixar a celebração e, no hospital, sofreu um aborto espontâneo que a traumatizaria.
Tempos depois, engravidou de novo e, mais uma vez, perdeu a criança.
A transição
Fe conta que o universo feminino sempre existiu dentro dela, mas foi durante o casamento que a transição começou.
No início da transição, me sentia completamente deslocada e, no começo, foi muito difícil me entender. Foi nessa fase que comecei a usar roupas femininas. Ao me olhar no espelho e me reconhecer como mulher, me se sentia relaxada, confortável. Para mim, havia um efeito calmante.
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Quero receberEm um desses momentos, em 2011, Cida flagrou o então marido com roupas femininas em casa. Foi quando as conversas sobre a transição de Fe tiveram início, apesar do choque que sentiu ao ver o marido "montado".
Cida conta que, em um processo (não sem sofrimento), foi testemunhando a mudança e as descobertas que Fe fazia de si e que tentava explicar à esposa.
"Uso de roupas femininas, mudanças de comportamento, afastamento afetivo, muita irritação e brigas, tudo isso fez parte do nosso 'caldo emocional'", lembra Cida.
Isso mostrou de maneira contundente o quanto o controle é uma enorme ilusão na vida. Eu resisti e lutei, mas fui me acomodando, pois aprendi há muito tempo que as coisas acontecem em nossa vida para o nosso melhoramento e crescimento. Meu maior medo era perder a minha família.
Cida Vasconcelos
Fe, por sua vez, conta que se descobriu transgênera "ao observar que tinha uma visão de mundo que a cis-heteronormatividade não concebe, no máximo aceita".
Não me encaixo na visão que se tem de um homem, e isso era muito angustiante. Vejo minha realidade a partir de princípios que entendo pertinentes ao feminino. Sinto e ajo em acordo com isso. Então desmontei a armadura.
Fe Maidel
A vivência profissional (Fe mudou de carreira e virou psicóloga) permitiu entender que não havia transtorno mental ligado à transição de gênero.
Vi que havia espaço para alguém como eu no mundo. Consigo me ver em cada momento da minha vida sendo eu, como me vejo/entendo hoje. Mas não havia espaço... nossa sociedade ainda repele o que não está codificado e normalizado.
Fe Maidel
Uma família
Foi a filha do casal, uma menina hoje com 15 anos (adotada aos 3 anos), quem ajudou a compreender melhor todas as transformações.
"Nossa filha é muito especial. Ela nos ajuda a viver melhor neste mundo, pois sempre compreendeu isso e tivemos com ela uma relação muito sincera, baseada em esclarecimento, diálogo e ela sempre soube que, acima de tudo, somos seus pais", diz Cida.
Ela é parte deste processo e se orgulha do pai, chama a Fe de pai e isso é tranquilo para todos nós. Ela faz parte de uma geração que lida com estas mudanças e diversidade de uma forma mais natural e tranquila.
Cida Vasconcelos
E, em meio a tantas mudanças, Fe também descobriu-se lésbica, pelo amor que sente por Cida. Um amor tão forte que a fez tatuar uma fotografia do dia do casamento, em sua pele, como lembrança querida de um passado que deu suporte para enfrentar o futuro.
Fe, inclusive, não tem questões em divulgar imagens do casal antes da transição e nem em mencionar seu nome antigo.
Fe e Cida seguem juntas —com diálogo aberto para a possibilidade de encontrarem a felicidade com outras parcerias, caso o desejo surja.
Fizemos terapia, usamos a espiritualidade como sustentação, mas sempre buscamos ser família, cuidando das coisas ao nosso redor, juntas. Foi e ainda é muitas vezes difícil para mim, mas estamos em processo de reconstrução de nós mesmas. Não somos mais um casal, mas somos família e nos apoiamos e cuidamos da nossa filha e uma da outra.
Cida Vasconcelos
O sentimento mudou com a transição de Fe, diz Cida. "Hoje o que nos mantém perto uma da outra é o cuidado que temos."
Fe formou-se em psicologia e atua como terapeuta, e Cida é profissional de marketing. Ambas afirmam estar reaprendendo formas de se reestruturar como mulheres seguras e realizadas social e emocionalmente.
Transicionar não é desbundar, é cuidar de si e de quem está com você, seja casamento, família, amigos. Todo mundo se mobiliza.
Fe Maidel
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