'Fingi estar apaixonada por 3 anos e virei caçadora de golpistas do amor'
Thatiana Cardoso não é atriz, e muito menos detetive. Mas, nos últimos três anos, a artista visual se dedicou a interpretar um papel para desmascarar uma farsa.
Em abril de 2021, após receber uma mensagem nas redes sociais de um homem que queria seduzi-la para lhe extorquir dinheiro, Thatiana fingiu estar apaixonada. Depois, fez o mesmo com vários outros homens.
O objetivo inicial era ver até onde os golpistas iriam. Mas o episódio acabou virando inspiração para uma série de trabalhos, expostos na Pinacoteca de São Bernardo do Campo até 29 de junho.
A Universa, a artista conta detalhes do processo que levou à mostra "O amor morre mais de indigestão do que de fome".
'Disse que era soldado'
"Recentemente, um tema inusitado me chamou a atenção. Me "atravessou", como gosto de dizer. De tal maneira que tive de me debruçar sobre ele: o golpe do amor.
Tudo começou em abril de 2021, em meio à pandemia de covid-19. Recebi uma mensagem no Instagram de um homem que se passava por um soldado americano em operação no Afeganistão. "Tudo bem? Posso falar com você?".
Não desconfiei de nada. Recebo mensagens de pessoas de vários países por causa da minha produção artística e respondi educadamente.
Em um dado momento, ele me chamou de "damsel" ("donzela", em inglês). Pensei: "Nossa! Quem fala assim?". Imediatamente me veio à mente a imagem da "damsel in distress" ("donzela em perigo"). Muito bem documentada na história da arte, retrata uma mulher acorrentada a uma árvore e salva por um cavaleiro. Achei aquilo estranho.
Fui olhar o perfil do sujeito, e as fotos me causaram estranhamento. Havia ali imagens que descreviam o cotidiano militar, mas também fotos 'românticas', como ursinhos e corações com a inscrição 'Eu te amo'. Pensei: 'Preciso ir a fundo nessa história"
Começamos a trocar mensagens. Ele dizia que eu era bonita. Também falava que era um homem honesto, que acreditava em Deus e que queria um casamento.
Farsa descoberta
Depois de uma semana de conversa, fiz uma busca reversa no Google e tive uma revelação chocante. A foto daquele homem aparecia nos sites da Interpol, do FBI e da CIA. As organizações faziam um alerta: aquela foto, assim como as de vários soldados, tinha sido roubada do banco de dados do Exército americano e estava sendo usada para o "golpe do amor".
Mandei mensagens para várias das mulheres que o sujeito seguia para tentar alertá-las. Muitas eram brasileiras; algumas mais velhas, vulneráveis emocional e financeiramente. Infelizmente, não tive muitos retornos.
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Quero receberA estratégia dos golpistas era certeira. Em um primeiro momento, eles plantavam nas vítimas uma falsa sensação de segurança. Se diziam homens românticos, cavalheiros e provedores. E então, depois de dias namorando online, inventavam desculpas — como um presente barrado na alfândega — para pedir dinheiro.
Tomada por um senso de justiça, comecei a conversar com o golpista para ver até onde ele iria. Depois, passei a procurar homens que faziam o mesmo. Fiquei obcecada. Ao longo de três anos, conversei com dezenas deles. Virei uma "caçadora de golpistas".
A tarefa era desgastante emocionalmente. Precisava fingir estar apaixonada por homens a quem desprezava. Conversava por horas, fazia declarações de amor.
No começo, as interações se davam por mensagem de texto. Depois, passei a falar com eles por áudio. Essa foi a pior parte do experimento. Me sentia fisicamente drenada. É mais fácil fingir quando você está digitando.
As obras
Os trabalhos artísticos foram surgindo ao longo do tempo. O primeiro deles foi um baleiro de vidro com 700 cápsulas de remédio contendo, em cada uma, a frase de um golpista do amor. A ideia surgiu a partir de relatos de depressão e ansiedade em mulheres vítimas do golpe.
Na mostra, o trabalho é exposto ao lado de um fone de ouvido. O visitante pode ouvir o conteúdo das frases, lidas por um tradutor online, com voz feminina.
Outro trabalho importante, que deu nome à exposição — "O amor morre mais de indigestão do que de fome" —, foi a produção de um vídeo com o registro de conversas que mantive diariamente com um golpista por três semanas. Ao final, sumi. Dei o famoso ghosting, como fazia com todos os outros.
O ghosting é uma violência silenciosa —e corriqueira— nos dias de hoje. Atrelado a um golpe financeiro, é ainda mais humilhante. Eu queria oferecer reparação a essas mulheres que, na mídia, costumam ser pintadas como bobas, ingênuas, presas fáceis de um golpe grosseiro.
Com a divulgação da mostra, muitas me escreveram se dizendo agradecidas e, de certa forma, vingadas pela violência que sofreram. Fiquei feliz. Foi como ver florir um jardim que plantei por anos.
Eu costumava acreditar que a arte deveria ser bonita. Hoje sei que isso nem sempre é possível. A arte é, por vezes, incômoda, pois fala da vida e toca em lugares difíceis. Uma obra que remete à violência não tem como ser bonita."
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