Mulheres intersexo: 'Nasci com genitália ambígua e fui criada como menino'
Em 1993, Mayara Natale, 36, Céu Albuquerque, 32, e Alana Claudiana, 41, já tinham ouvido falar vagamente sobre hermafroditismo, termo usado na época para identificar discordância nos cromossomos sexuais.
O termo apareceu na primeira versão da novela 'Renascer' por meio da personagem Buba (que foi interpretada pela atriz Maria Luisa Mendonça).
Trinta anos depois, o termo "hermafrodita" foi substituído por "intersexo" e, com o passar do tempo, todos tivemos acesso a mais informações sobre essa condição. Até por isso, Mayara, Céu e Alana esperavam ver a representação no remake da trama das nove porque seria uma forma de se verem representadas, pois as três são mulheres intersexo.
O autor da trama, Bruno Luperi, no entanto, optou por substituir a personagem originalmente criada por seu avô, Benedito Ruy Barbosa, por uma mulher transgênero, que é bastante diferente da condição de intersexualidade.
A comunidade médica, inclusive, prefere usar o termo "diferenças do desenvolvimento sexual" em vez de "intersexo" para evitar confusão com outras condições, como transgêneros, disforia de gênero e homossexualidade.
Conforme descreve a Intersex Human Rights, da Austrália, a pessoa intersexo tem características sexuais atípicas podendo, por exemplo, ter os dois órgãos reprodutores —masculino e feminino—, devido a alterações no cromossomo.
Ela nasce com características físicas, hormonais ou genéticas, que não são inteiramente femininas nem inteiramente masculinas; ou com uma combinação de feminino e masculino; ou nem feminino nem masculino.
"Se fosse uma mulher intersexo no espaço de uma mulher trans, o Brasil teria se revoltado. Achei muito violento uma mulher trans estar no espaço de uma personagem que não cabe a ela. Era o momento de falar mais sobre o tema", avalia a pernambucana Céu.
Céu tornou-se a primeira pessoa do país a conseguir obter o registro de intersexo em sua certidão de nascimento no último mês de março, o que trouxe visibilidade ao tema e estimulou discussões importantes.
Ela, Mayara e Alana compartilham com Universa os desafios na autodescoberta e aceitação, as complexidades de sua identidade —incluindo a violência contra seus corpos— e falam da necessidade de visibilidade e reconhecimento.
"Criada como homem, congelei meus óvulos para ser mãe"
"Nasci com a genitália ambígua, mas fui criada como menino. Aos 13 anos, tive minha primeira menstruação e meu corpo começou a se feminilizar.
Descobri no consultório médico que tinha os dois aparelhos reprodutores completos e era uma pessoa intersexo. Meus cromossomos são mosaico 46XX/46XY. Foi chocante para todo mundo, mas, ao mesmo tempo, para mim, me fez entender por que eu sempre gostei de homem, de brincar com boneca, de usar vestido.
Os médicos deram várias alternativas aos meus pais, como seguir me educando como menino ou me operar. Eles achavam que eu tinha que ser uma coisa ou outra, e escolheram que tomaria testosterona dos 13 aos 18 anos para meu corpo não se desenvolver como uma mulher, ter a imagem mais masculina possível para terminar os estudos de forma tranquila e decidir o que queria na maioridade.
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Quero receberMas o meu segundo sangramento foi em sala de aula, e todos os meus colegas viram. Tive que mudar de colégio, porque faziam piadas.
Em 2001, quando me formei, escolhi ir para a Espanha e ter uma transição de forma mais suave e menos chocante para mim e para minha família. Lá, comprovei, com teste de cromossomo, a minha condição e consegui nacionalidade como Alana. Mas só apareci no Brasil como Alana em 2013, após o falecimento do meu pai. E é o único lugar onde vejo ainda muita ignorância sobre o tema.
Eu tinha dez anos quando vi a novela Renascer e, três anos depois, quando descobri a minha condição, logo me lembrei da Buba: uma mulher bem resolvida, elegante e feliz. Quando fiz esse link tive certeza de que não ficaria isolada no mundo.
Ter uma representatividade positiva na televisão faz você não se marginalizar.
Nunca pensei em fazer a cirurgia de redesignação porque uma pessoa intersexo não necessariamente tem disforia de gênero. Muitas vezes a gente se olha no espelho e tem orgulho do jeito que a gente nasceu.
Eu não tinha uma imagem totalmente masculina e, no geral, tive sorte nos relacionamentos. Me casei duas vezes sem os dois saberem o que iam encontrar, mas no final deu tudo certo e me aceitaram. Gostaram de mim do jeito que eu sou.
Tenho o sonho de ser mãe e congelei meus óvulos há 10 anos, após dois de tratamento. Quem sabe eu ainda vou ser mãe do meu próprio filho, geneticamente? Isso, para mim, seria uma conquista. Mas se isso acontecer, terei que passar por uma cesárea, porque a via de saída é muito pequena, não tem como. E se não for possível, moro nos EUA, onde a barriga de aluguel é legalizada." (Alana Claudiana, 41, psicóloga, cantora e jornalista, do Rio de Janeiro)
"Nos colocam como uma nova orientação, como se fosse uma moda"
"Tenho insensibilidade parcial aos androgênios —a parte testicular produz estradiol, não testosterona. Mas só descobri ser intersexo quando adulta, ao ter uma gravidez psicológica e produzir leite.
Dar visibilidade ao tema é importante, principalmente porque nos colocam como uma nova orientação sexual, como se fosse uma moda atual. Mas nossa condição é biológica.
Quando nasci, fui criada como um menino, porém tinha características de menina.
Minha mãe me torturava porque ela me ouvia dizendo: 'mãe, eu sou menina, sou a Mayara, não sou um menino'. No entanto, ela insistia que eu era homem e me batia. Até queimou minha língua por causa disso antes de eu completar 11 anos, quando comecei a ter pequenos seios.
Na puberdade, os hormônios femininos ficaram ainda mais ativos. Mas nunca me identifiquei como uma pessoa transgênero ou uma travesti. Só tive relacionamentos com homens, mas após desilusão, entrei na igreja, desisti de viver como Mayara e me casei com uma amiga. Ela sabia de toda a minha história e não vivíamos como marido e mulher, mas para a sociedade, sim.
Meu sonho era ter filhos, e veio a Paola, hoje com 8 anos, de uma inseminação caseira. Quando ela tinha 1 ano, a outra mãe biológica a deixou e passei por uma gravidez psicológica: meu corpo começou a se expandir, como quadril, seios e barriga. E a amamentei.
Fiz um teste e como meu estradiol [hormônio que age no desenvolvimento dos órgãos sexuais das mulheres] estava em níveis altíssimos, deu positivo, como se estivesse grávida. Foi nesse momento que percebi que algo estava errado comigo.
Foi um psiquiatra que entendia do assunto que me disse: "você é uma mulher". Tinha 27 anos quando exames fecharam meu diagnóstico.
E agora quero fazer testes na minha filha para saber se ela é também intersexo. Tudo para ela é muito esclarecido.
Tive disforia com meu órgão genital a ponto de mutilá-lo e quase morri por isso. Estou na fila para a cirurgia de adequação sexual há muitos anos, mas os médicos ainda encaram isso como um procedimento estético, e muitos se recusam a fazer.
Preciso de vários diagnósticos para ser aprovada para a cirurgia pelo SUS. Além disso, sou jogada para núcleos trans, porque por não ter órgão ambíguo me colocam como pessoa transgênero.
Curioso que quando é um bebê que não tem noção de nada, nem sexo definido, eles operam com urgência. Mas ninguém se preocupa com a minha vida. Sou uma pessoa adulta, sei o que quero e ainda tenho relação sexual." (Mayara Natale, 36, modelo e atriz, de São Paulo)
"Todo mundo metia a mão na minha genitália"
"Tenho hiperplasia adrenal congênita, que leva a pessoa a ter genitália ambígua. Fiquei seis meses sem registro de nascimento até o exame cariótipo [identifica os cromossomos e possíveis alterações genéticas] ficar pronto.
Nasci em 1991, de uma mãe, na época, com 23 anos e pouco estudo, e um pai de 27, extremamente pobres e sem acesso à internet. Os médicos mandavam e eles obedeciam, então me mutilaram quando eu tinha pouco mais de um ano.
Apesar da condição, estava saudável, mas embora uma criança não faça sexo, se preocuparam em fazer uma cirurgia de genitoplastia feminizante. Na época, eles arrancavam todo o clitóris externo, pegavam o prepúcio para fazer os pequenos lábios, mas matavam o clitóris e a glândula.
Passei por muitas violências no hospital, a ponto de ser exposta para diversos residentes. Todo mundo metia a mão no meu corpo e na minha genitália, e o médico dizendo que a cirurgia foi um sucesso. O foco nunca foi o acolhimento de pessoas nessa condição, mas na genitália.
"Eu não entendia o que eu era"
A partir dos 17 anos tentei reverter o que tinham feito e ter qualidade de vida, e sofri mais violência. Numa das cirurgias pelas quais passei, o médico fez o contrário do que pedi e apertou minha vagina. Ainda disse que mulher lésbica não precisa de vagina larga. Eu não conseguia nem fazer um exame ginecológico. Outros procedimentos foram me mutilando ainda mais, e já não sobrou quase nada.
Isso tudo afetou minha construção de identidade e orientação sexual. A violência da cirurgia rouba toda a sua construção como humano.
E a gente tem uma geração de pessoas que crescem com diversos tipos de disforia, não só do corpo, mas de autoestima, pessoas que não têm sensibilidade, têm dor, problemas psicológicos. Eu cresci uma criança com disforia. Eu não entendia o que eu era.
Dentro das minhas relações, sofri intersexofobia, a ponto de perguntarem se eu tinha pênis ou vagina, ou aparecia gente querendo ver minha genitália pra saber se ia encarar. Mas a maioria foi tranquila, e tive relacionamentos legais, com pessoas que se importavam com quem eu era.
Além da importância de ter mudado o meu nome, que antes era não-binário, eu vejo a questão da mudança do registro como uma luta biopolítica, para que políticas públicas possam ser criadas para proteção dessas crianças. Infelizmente, as crianças intersexuais são registradas como sexo ignorado, e mutiladas.
Quero tentar reverter isso. É uma forma também de saber quantas pessoas intersexo existem no Brasil. Recentemente, já avançamos na questão, e a Justiça Federal decidiu adicionar no CPF o campo intersexo." (Céu Albuquerque, 32, ativista, jornalista, fotógrafa e engenheira civil, de Pernambuco).
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