Monica Benicio fala de vício após morte de Marielle: 'Bebia pra esquecer'
A escrita sempre esteve presente na relação de Monica Benicio e Marielle Franco. Foi por meio dela, inclusive, que Monica manteve vivas as lembranças após o assassinato da vereadora.
Agora, essas memórias dão origem ao livro "Marielle e Monica: Uma história de amor e luta" (Rosa dos Tempos), lançado neste mês.
O processo também serviu para elaborar outras dores. Entre elas, a do alcoolismo, da qual fala sem amarras no livro. "Faço o esforço de colocar de forma íntima para trazer o debate, já que hoje eu represento tantas lutas."
À Universa, ela detalha a produção do livro, compartilha os desafios de voltar a se relacionar e como foi viver o luto de novo no ano passado, após a perda precoce do amigo e deputado federal David Miranda.
Universa: Como foi o convite para escrever o livro? A escrita foi terapêutica, ou reviver as memórias trouxe muita dor?
Monica Benicio: Recebi alguns convites ainda em 2018, mas recusava, porque para mim o central era a gente falar de luta por justiça. Em 2019, topei encontrar uma editora que estava pelo Rio. E ela me convenceu da importância da nossa história de amor ser contada para outras mulheres e famílias LGBTs.
A escrita sempre foi muito presente na minha relação com a Marielle, em especial porque tenho dificuldade de falar sobre afeto, sentimentos. Até conto no livro que a Marielle era a rainha da DR.
Boa parte do início do livro são coisas que eu escrevi, meio que numa tentativa de não perder memórias dela. Num primeiro momento, o livro contaria nossa história até o 14 de março, já que o pedido era pra eu entregar o livro em um ano, mas eu demorei cinco.
Muitas coisas me faziam ter dificuldade em elaborar a morte da Marielle. Demorei três anos para falar que ela morreu. E o livro virou uma peça chave na minha terapia, porque é através da escrita que eu me desnudo. Mas toda vez que eu pegava pra escrever, acessava memórias que não queria lidar. Foi muito doloroso, feito de pouquinho em pouquinho. Um capítulo, um sofrimento, um choro.
Até que chegou o final do ano passado, em que eu resolvi colocar na rua como parte da minha própria história de elaboração do luto e para honrar Marielle e David [Miranda], fazendo o que eu acho que deixaria eles orgulhosos. Mesmo com lágrimas, entreguei em dezembro.
O livro aborda a sua forte depressão após o assassinato da Marielle. Além do suporte de amigos, o que te ajudou neste período?
O acolhimento de uma rede de afeto incansável e vigilante foi fundamental. Além disso, pouco antes do assassinato, eu estava voltada para o estudo do espiritismo kardecista, fazendo meditação. Quando o assassinato acontece, foi quase como se eu sentisse que os últimos meses tivessem sido um preparo. A minha religiosidade foi um elemento importante.
Eu não desacreditei de Deus. O que foi pior, porque briguei com Deus, responsabilizei ele. Fiquei brava. Ao mesmo tempo, pelo que tinha de acúmulo das minhas crenças, o suicídio, por exemplo, não se apresentava como o caminho mais curto, mas como o mais longo.
E a luta por justiça me orienta como motivo para seguir, com as pessoas que se somam em cada abraço de ajuda. Eram nos encontros com estranhos que encontrava um pouco da Marielle. A solidariedade me trazia a Marielle de volta.
Você decide expor a sua relação pouco saudável com o álcool. Por quê?
É uma forma de me ajudar e fortalecer a conscientização contra esse estado de sofrimento. Faço o esforço de colocar de forma íntima para trazer o debate. É uma parte importante da minha história, e acho que outras pessoas podem se identificar com os desafios e buscar tratamento.
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Quero receberO álcool é uma droga muito sociável, a gente tem acesso cada vez mais cedo e são poucos os debates sobre os perigos, claro que movido por uma lógica de mercado. No imaginário social, o alcoólatra tá largado na rua, perdeu família, emprego, bebe perfume. Não é sempre assim.
Inclusive, hoje eu digo que não tô bebendo porque sou alcoólatra e tô em tratamento, e as pessoas querem negociar: "Tem certeza? É só uma cerveja."
Sempre tive uma relação de uso abusivo, mas por um bom momento não atrapalhou a minha vida. Já percebia que não era saudável, porque bebia em momentos de tristeza para esquecer e em momentos de felicidade para celebrar. Quando entendo isso, paro de beber por um tempo, para provar que tinha controle sobre aquilo, mas volto.
Depois do assassinato da Marielle, parei de beber, porque cortei qualquer coisa que me desse prazer. Não ligava a TV, não ouvia música, deixei de comer e beber. Fiz isso por sentir culpa de estar viva. Meses depois, volto a beber como fuga. Bebia muito, porque acordava triste. Fazia as tarefas do dia e à noite bebia mais, para esquecer que convivia com a dor e a culpa de ter restado.
Quando reconheceu o alcoolismo e buscou ajuda?
Chega uma hora que entendo não ser saudável, mas não quis romper porque me fazia companhia. Era uma companhia destrutiva, mas tudo bem ter uma fonte de autodestruição se a pulsão de vida não é uma prioridade.
Aí, o David interna em agosto de 2022, no meu ápice de consumo. Tenho uma relação forte com promessa e prometi ficar um ano sem beber pela saúde dele. No fundo, também era um pedido de socorro meu.
Nove meses depois, o David morreu. Fiquei de novo muito chateada com Deus, mas encontrei um motivo para voltar a beber. E vou escalonando de novo, com a narrativa de desculpa. Era o luto do David, justiça por Marielle, problemas no trabalho, na vida. Tudo era motivo.
Foi o David que me levou pela primeira vez a uma sala do AA [Alcoólicos Anônimos]. Ele sempre foi um entusiasta de eu parar. Comecei a sentir culpa.
Graças a um bom terapeuta e uma rede de afeto, pessoal e político, passo a olhar com mais amor para mim. Tomo a decisão de cuidar disso como maneira de honrar a memória deles, as duas pessoas que eram as minhas referências de pulsão de vida. Voltei para as salas do AA e passei a debater mais na terapia.
Marielle me chamava de obstinada. E resolvi colocar essa obstinação em prol da minha saúde. Não é fácil, tô há pouco mais de seis meses sem beber. É uma vigilância constante. Não sou capaz de ter uma relação saudável com o álcool.
Há um capítulo só para o David Miranda. Qual o baque de perdê-lo precocemente?
O David ficou nove meses e três dias internado, e eu só não fui visitá-lo três dias.
Ele ficou conhecido como fênix no hospital, porque por três vezes os médicos diziam para nos despedirmos, mas ele se recuperava. Perdi o David três vezes em nove meses. Em algum lugar, essas melhoras me davam esperança dele reverter o quadro.
Foi um processo de luto diferente do que já tinha experimentado. David e eu nos falávamos todos os dias por ligação de vídeo. Então, quando ele interna e fica sem telefone, foi um preparo da mudança de rotina. Às vezes, me pego revirando mensagens, vídeos e é sempre como se não fosse real.
Você cita no livro as primeiras vezes após a morte da Marielle. Foi difícil voltar a se relacionar?
Um grande desafio. Havia a culpa de desejar alguém e gostar de me sentir desejada. Tinha medo que me relacionar com outras mulheres fosse deslegitimar o meu lugar de família da Marielle. E, num primeiro momento, eu acreditei nisso, então eu resistia.
Tive alguns relacionamentos, todos muito contaminados pela culpa, o que levava à autossabotagem e a não disponibilidade emocional. E, a cada relação, os acúmulos de erros e dores eram melhor elaborados. Até que passo a olhar para os afetos orientada pelo meu desejo e não pela culpa.
Hoje, namoro há dois anos, uma relação que não nasce livre de complexidade, mas que é construída com diálogo, carinho e paciência dela não olhar para o meu relacionamento com a Marielle como um lugar de competição, de disputa de afeto.
Se eu já tive culpa de estar viva, de sentir desejo e querer me relacionar, hoje, mesmo que não plenamente resolvido, isso é trabalhado para eu não viver me revirando em dor. Com tranquilidade, garanto que Marielle não ia querer me ver assim.
A invisibilidade por ser uma mulher viúva de outra mulher é bastante falada no livro. Mas sente que essa lesbofobia é diferente na política, por exemplo, quando dizem que a sua única pauta é a Marielle?
Se eu fosse uma vereadora de pauta única, de justiça por Marielle, isso por si só já seria justificado.
Eu e ela fomos companheiras por comungarmos de uma visão de mundo. Eu me entendia enquanto defensora de direitos humanos, mas não era militante, não tinha construção com movimento social e partidos. A luta de justiça por Marielle me organizou para a linha de frente.
O meu senso de justiça e o meu compromisso com trabalho podem ser questionados por outras pessoas, mas aí não é problema meu. Hoje, seis anos depois e com três anos de mandato consolidado, isso está muito bem resolvido. De todas as culpas cristãs que demoro para me desfazer, essa eu não carrego, porque sempre tive certeza do que fazia.
Te vimos em muitas entrevistas no domingo em que os suspeitos do assassinato foram presos. Como foi este dia para você?
Foi muito difícil, num grau diferente do que foram o 14 e o 15 de março de 2018.
Na manhã de 24 de março, meu telefone tocou 6 da manhã, era um agente da Polícia Federal. Se em algum momento eu não pensei o que era a expectativa disso, acho que pelo menos fantasiei que poderia trazer algum sentimento de paz, alívio e justiça. E foi o oposto.
Eu me vi numa ligação, em que ele confirmou os nomes, porque as prisões eram executadas naquele momento. Ele disse: Domingos Brazão, Chiquinho Brazão e Rivaldo. Eu automaticamente complementei: "Barbosa?"
O nome do Rivaldo me trouxe a sensação de traição. Quando ouvi, tive um flash de imagens de 6 anos atrás. Ele foi a primeira pessoa que nos recebeu, sorriu, disse ser amigo da Marielle, deu a palavra de investigar, eu apertei a mão dele. São muitos sentimentos organizados na palavra desamparo.
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