Idosas sofrem homofobia em condomínio; como lidar com insultos de vizinhos?
Há dois anos, a ex-servidora pública Maria*, 64, mudou-se para uma cidade litorânea com sua mulher. Juntas há 33 anos, elas sempre planejaram morar perto da praia após a aposentadoria. "Era uma cidade muito agradável, com custo-benefício muito bom", conta. "Quando viemos para cá, só queríamos ter tranquilidade e uma vida simples despreocupada nesta idade. Infelizmente, não foi isso que encontramos."
Já nos primeiros meses após a mudança, elas ouviram os primeiros ataques homofóbicos de um casal de vizinhos que viviam no andar de baixo. O assédio escalonou até elas entrarem com um processo judicial contra eles.
A primeira coisa que escutamos foi: 'Elas vieram de um lugar onde se pode fazer de tudo, só que aqui não as coisas não funcionam', se referindo ao nosso relacionamento. Ouvimos também que eles tinham nojo, que éramos vagabundas. Também perguntas como: 'Quem é o homem da relação', questionando se a gente tinha renda para isso, esse tipo de fala agressiva. Por causa do eco no edifício, ouvíamos sem esforço.
Os comentários lesbofóbicos deram espaços para calúnia e difamação. "Começaram a dizer que a gente fumava no nosso apartamento, sendo que nenhuma de nós fuma. A vizinha gritava irritadíssima e nos xingava de coisas como filhas da p*ta, maconheiras e traficantes", disse.
As agressões ficaram cada vez mais contínuas, até que a esposa de Maria teve que buscar tratamento porque desenvolveu insônia. "Ela estava realmente perturbada, acordava no meio da noite chorando desesperada. Quando não se conhece a jurisprudência, você não vê saída para sua situação", diz.
Ela ficou em um nível de estresse muito alto. Não adiantava eu dizer para ela que eles não poderiam fazer aquilo, não tínhamos conhecimento jurídico. Ela queria ir embora, dizia que queria fazer as malas e sumir dali. Mas aquilo não era justo, planejamos a vida inteira para aquele momento, para tudo ser destruído daquela maneira.
A primeira saída que Maria encontrou foi enviar uma mensagem no grupo do WhatsApp do condomínio. "Relatamos o que estávamos passando. É um condomínio grande, mas só nós moramos fixos aqui, a maioria usa o apartamento como casa de veraneio, então todo mundo era alheio à situação. Mas infelizmente isso não melhorou, simplesmente diminuíram o tom de voz, mas as ameaças, intimidações e perseguições continuaram", conta.
Ela consultou advogados para saber o que era possível ser feito e registrou boletim de ocorrência em uma delegacia especializada em atendimento a mulheres. Em uma audiência de conciliação na Justiça, a decisão proibiu os vizinhos de citarem o casal, seja verbalmente ou na internet. Além disso, elas conseguiram uma medida protetiva, que impede a aproximação entre eles em espaços compartilhados.
Nunca tinha passado por uma situação dessa na minha vida. É constrangedor, enlouquecedor. Fiz pesquisa na internet para ler sobre pessoas que tiveram uma experiência parecida e o caminho que elas trilharam para para se defender. Buscando casos semelhantes, me deparei com o 'blocking' para descrever este assédio na vizinhança e se encaixou perfeitamente.
Lei brasileira prevê punição
A advogada Beatriz de Almeida afirma que o termo "blocking" não é comum e americaniza que condutas ilegais que a legislação brasileira já pune. "Falamos como se fosse algo novo, mas na verdade é algo que é tipificado no Brasil há muito tempo. Desde o Código Civil de 1973, já falamos de direitos de vizinhança", afirma.
"A partir de 2002, começamos a falar sobre o uso consciente da propriedade e as consequências desse uso prejudicar ou perturbar alguém, isso do ponto de vista do direito civil e que tem reflexos no direito administrativo", explica a advogada. Uma convenção de condomínio, por exemplo, já pode prever ações para coibir esse tipo de comportamento.
"Do ponto de vista do direito penal, nosso Código, que é de 1940, também já prevê isso. Só que tem outros nomes, como a perturbação do sossego", exemplifica.
A advogada também enquadra o caso em outros crimes, como o de violência psicológica. "A violência psicológica é um crime de gênero, então as vítimas exclusivamente são mulheres. Autores podem ser mulheres ou homens, mas a vítima do crime é especificamente a mulher", pontua.
Newsletter
HORÓSCOPO
Todo domingo, direto no seu email, as previsões da semana inteira para o seu signo.
Quero receberAlém disso, ela diz que o caso em questão não foi só uma violação ao direito de vizinhança, mas uma violação ao direito de personalidade. "Porque há uma discriminação inclusive injuriosa. Injúria também já está no código há muitas décadas, além da homofobia."
O que fazer nesses casos
A advogada Vanessa Andrade conta que atuou, só neste ano, em três casos semelhantes ao de Maria. Para ela, é importante entender, primeiramente, quais delitos estão sendo cometidos.
Andrade orienta, em primeiro lugar, entender as normas do condomínio, se houver. "O síndico não é obrigado a resolver questões individuais, apenas administrativas. Mas é importante o registro", diz.
Outra via seria analisar, na situação, se a conduta dos vizinhos pode ser categorizada como crime previsto em lei (assédio, homofobia, calúnia etc.), para levar o caso à Justiça.
O que pode acontecer?
O juiz pode conceder medidas cautelares, pedindo afastamento do vizinho, com limitação em relação ao uso dos elevadores, por exemplo. "Essa medida é importante porque às vezes é uma situação que pode escalar para a agressão física", pontua a advogada.
A medida cautelar tem prazo geralmente de seis meses com reavaliação de sua manutenção, se o juiz entender que as pessoas ainda estão em situação de perigo.
Na Justiça, o primeiro caminho pode ser a realização de audiência para ver se há um acordo entre as partes. "O acordo pode ter um objetivo não financeiro, como pedido de indenizações, ou apenas para amenizar a situação: não citar nome, não ficar próximo."
Além das punições do crime específico (no caso de calúnia, por exemplo, há previsão de pena de seis meses a um ano ou uma multa), pode ocorrer restrições das medidas cautelares.
O vizinho agressor só poderia ser expulso do prédio, diz Andrade, se houver comprovação de que estão atrapalhando a ordem do condomínio, ou seja, os transtornos não são individuais, mas causados a todos os conviventes do local. É preciso identificar, nesse caso, quais são as normas do edifício.
A advogada também orienta o registro de provas para quem passa por situações como essa. "Ela pode gravar dentro da casa dela para tentar obter provas; acusações no WhatsApp devem ter prints autenticados em cartório. Se os fatos ocorrerem em meio público com testemunhas, aconselho registrar em ata notarial do condomínio e pedir imagens das câmeras do local público, se houver", afirma.
*Nome alterado para preservar identidade da personagem
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.