'8 anos de inferno': as mães que foram proibidas por lei de ver os filhos
Uma denúncia de abuso sexual, uma separação por violência doméstica e uma restrição imposta pela pandemia. Todos foram motivos para que mulheres fossem denunciadas por alienação parental por parte dos pais de seus filhos.
De acordo com a lei nº 12.318, se a pessoa responsável pela guarda de uma criança ou adolescente praticar atos que os levem a repudiar seus pais ou mães, isso pode ser caracterizado como alienação parental.
As mulheres, no entanto, acabam sendo as mais denunciadas, conforme apontam especialistas ouvidos por Universa.
"É mais fácil o judiciário dizer que a mãe aliena do que dizer que o pai estupra a filha ou agride a mãe, isso porque vivemos a naturalização da violência [contra a mulher]", comenta Sibele Lemos, uma das líderes do Coletivo Proteção à Infância Voz Materna, que luta pela revogação da lei da alienação parental.
A seguir serão expostos três relatos de mulheres que alegam estar sendo vítimas da lei que, no Congresso Nacional, está sendo questionada tanto por parlamentares de direita quanto de esquerda.
As mulheres são mais acusadas de alienação parental porque vivemos em uma sociedade patriarcal na qual elas permanecem sendo as responsáveis pelos cuidados com os filhos. Maria Alice Rodrigues, advogada da família
'Oito anos de inferno'
Márcia Silva*, Mato Grosso do Sul
Um dia minha filha chegou em casa me dizendo que o "papai passou álcool na pepeca" dela. Foi um choque. Era 2016, ela tinha quatro anos e há três eu tinha me separado do pai dela.
Fui direto para o conselho tutelar perguntar o que deveria fazer, eu não vi nela nenhum sinal de abuso, de assadura, de nada, mas eu fiquei preocupada.
A partir desse momento começou o inferno. Tivemos que ir à delegacia, ao IML (Instituto Médico Legal) e à UPA (Unidade de Pronto Atendimento).
Ela fez um desenho com a assistente social característico de uma criança abusada. Ali, eu descobri que ela tinha sido realmente abusada. No desenho, o pai era bem grande, tinha o pênis demarcado, e ela era bem pequena e sem boca.
Foram dois meses depois disso, para eu perder a guarda da minha filha acusada de alienação parental.
Houve uma audiência na qual o juiz insistiu que ela tinha que ver o pai e eu disse que não deixaria. Veio, então, a decisão de perda de guarda. Só que eu peguei minha filha e fugi da cidade.
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Quero receberDemoraram quatro meses, mas nos encontraram e eu passei só a ver minha filha por meio de uma visita assistida no Conselho Tutelar. Foi eu questionar se minha filha ainda estava sendo abusada pelo pai para o juiz me proibir de vê-la.
Fiquei mais dois anos sem vê-la, sem nem mesmo ter contato com ela por telefone. Não aguentei e estourei tudo na mídia. Botei os áudios da minha filha contando o que aconteceu, botei a foto do pai dela, eu disse tudo.
Eu quis mostrar que não era mentirosa, que eu não fiz uma falsa denúncia.
Ele chegou a abrir um processo criminal contra mim e na audiência determinaram que eu poderia voltar a ver minha filha aos sábados, o dia inteiro, desde que eu não postasse mais nada na mídia sobre o caso.
Eu já construí o quartinho dela em casa, mas não sei se vou poder ficar com ela um fim de semana inteiro, por conta desse processo criminal, se vou conseguir ter a paz que eu preciso, a paz de ter minha filha de vez comigo.
São oito anos de inferno. Lutei tudo o que eu podia e com todas as minhas forças. Ganhei com isso quatro nódulos no fígado que estão em acompanhamento, estou bem cansada.
'Ele disse que eu tinha ficado louca'
Eleonora Silva*, São Paulo
Em outubro de 2020, ele pediu a guarda das nossas filhas. Na ação, disse que eu tinha ficado louca, saído de casa e levado as crianças embora.
O que aconteceu, na verdade, foi que eu saí de casa por ter sofrido violência doméstica, eu não aguentava mais tudo que ele fazia comigo.
Eu já tinha pedido para ele ir embora, mas ele não ia. Então eu que saí, peguei minhas filhas e comecei a construir uma nova vida.
Até que veio essa notificação judicial que dizia que as crianças iriam morar com o pai e que eu teria um dia de visita a cada 15 dias.
Eu comecei a correr atrás de uma advogada, mas não adiantou, tive que entregar minhas filhas para ele e passei a quase não ter mais contato com elas. Na época, a mais velha tinha oito anos e a mais nova, seis. Foi muito triste.
Quando elas vinham ficar comigo, estavam quase sempre com vermes, com os cabelos totalmente embaraçados, às vezes até com piolho. Vinham com candidíase, com a barriga toda distendida porque não comiam direito e uma delas teve que arrancar um dente por excesso de cárie.
Tudo isso foi colocado no processo, eu pressionava a Justiça, mas nada das crianças voltarem para mim. No meio disso, o pai a todo momento alegava que eu fazia alienação parental.
Elas não queriam ir com ele. Ele as puxava à força, elas iam gritando "mamãe, mamãe, mamãe" e não tinha nada que eu pudesse fazer, porque era uma determinação judicial.
Só que eu ficava dez dias sem saber nada das minhas filhas, nada. Ele não mandava notícias.
Teve uma vez, essa foi bem grave, que a minha filha falou que acordou chorando à noite com o pai mexendo na vulva dela. Você toma aquele choque, mas não comecei um interrogatório nem nada assim, eu só mandei mensagem para ele perguntando o que tinha acontecido. E ele não respondeu.
Só que é uma criança falando, você não sabe o que é fantasia e o que é realidade. Eu, então, fui ao conselho tutelar e me orientaram a ir imediatamente à delegacia para fazer um boletim de ocorrência. Chegaram a abrir um processo que eu nunca mais tive retorno.
Ele colocou esse boletim de ocorrência no processo contra mim, dizendo que era uma forma de fazer alienação parental. Ele também usou esse BO para abrir um processo criminal de injúria contra mim.
Eu troquei de advogada e consegui que a juíza do caso pedisse um exame psicossocial para determinar quem cuidaria melhor das crianças.
Minhas filhas foram embora em outubro de 2020, só em setembro de 2021 que ocorreu essa conversa com psicólogo, que foi extremamente favorável a mim.
Se o laudo da psicóloga era favorável, faltava o da assistente social, que só ficou pronto em julho de 2022. Depois de dois meses as crianças voltaram a morar comigo.
'Eu não acredito na Justiça'
Lurdes Aparecida*, Santa Catarina
O ano era 2020 e, durante a pandemia, eu e o pai da minha filha trabalhávamos como enfermeiros na linha de frente. Decidimos em comum acordo que, para que ela ficasse bem, deveria ficar com os meus pais. Eles são idosos, então para visitá-la a gente ficava no portão, de longe.
Isso a deixou muito deprimida, ela tinha sete anos e sempre morou comigo. Mesmo quando a guarda era compartilhada com o pai, o lar de referência era o meu.
Em setembro daquele ano, eu decidi pedir férias no trabalho, fiz o isolamento e consegui ficar com ela por duas semanas.
Só que nesse meio tempo o pai dela estava gerando situações de estresse, indo na casa dos meus pais querendo pegar a Daiane*, dizendo que ela estava em cárcere privado.
Eu não sabia, mas ele estava montando um processo contra mim pedindo a guarda total dela. Descobri enquanto estava a caminho de uma loja para comprar um presente de aniversário para ela.
Ele tinha ido com uma ordem judicial até a casa da minha mãe buscar minha filha.
Tudo o que ele colocou no processo foi aceito. Áudios, vídeos, tudo editado como se aquilo fosse verdade.
O juiz que deu a guarda para ele disse na decisão que a pandemia não existia, que se tratava de um vírus chinês benéfico para crianças.
No final, ele dizia que eu estava usando a pandemia para fazer alienação parental.
A minha menina foi para um lar que não era o dela para dormir durante um mês em um colchão no chão, no quarto com o pai e a madrasta. Ela foi trocada de escola e eu não conseguia falar com ela nem por ligação.
Só consegui ter um contato com ela quatro meses depois, na casa dele e com supervisão dele. Ele ficava se intrometendo na conversa, não nos deixava sozinhas, era uma violência psicológica.
Só bem depois consegui ter um dia com ela a cada 15 dias.
Essa lei de alienação parental só serve para homem. A Daiane mesmo nunca foi ouvida e nunca foi considerada, ela é ignorada e já acabou normalizando essa situação toda.
Eu não acredito na Justiça, a gente só percebe o peso de ser mulher quando engravida e eu odeio isso.
Eu não falo certas coisas no telefone com ela porque hoje é muito fácil gravar e editar, e se eu pedir uma perícia de gravação ou de vídeo, eu que tenho que pagar. Então é muito esforço, muita demanda de energia
Eu estou exausta, porque tudo tem que ser judicializado. Estou exausta porque tenho minha maternidade invalidada e sou vista como louca, insana e histérica por querer defender minha filha, cuidar da minha filha, por tentar lutar pelo que é melhor para ela.
O que dizem os especialistas
Ao mesmo tempo que a revogação da lei de alienação parental é apoiada por parlamentares no Congresso, o tema não é unanimidade. Há quem proponha a reformulação.
"Nas situações em que são denunciados abusos sexuais ou violência intrafamiliar, é preciso que a palavra das vítimas seja valorizada", comenta a advogada da família Maria Alice Rodrigues.
Há no Judiciário um protocolo publicado pelo CNJ em 2021, para julgamentos com perspectiva de gênero e que aborda processos sobre alienação parental.
O documento alerta que a lei tem sido usada por homens para "enfraquecer denúncias de violências e buscar a reaproximação ou até a guarda unilateral da criança ou do adolescente".
Conflitos entre os genitores não apenas podem resultar em situações de violência institucional, mas também exercem impacto negativo sobre crianças e adolescentes.
Essas brigas durante a separação são uma das principais causas de violações dos direitos das crianças e adolescentes, afirma Ariel Castro Alves, advogado especialista no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). E o resultado disso pode ser perverso.
De acordo com Alves, os filhos podem desenvolver ansiedade, depressão, intenção suicida e estresse pós-traumático. "Muitos abandonam os estudos e passam para o uso abusivo de drogas e álcool."
*Os nomes das personagens foram trocados para reservar suas identidades.
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