'Fui estuprada por padre e passei décadas sem lembrar até ter um flashback'
Mary Dispenza, de 84 anos, foi estuprada por um padre aos sete anos. Mas, como outras vítimas de abuso, enterrou o trauma e só veio a revivê-lo décadas depois, após um flashback que trouxe o episódio de volta à superfície. Ela então decidiu confrontar o abusador. A Universa, ela conta sua história:
'Fez sinal para me sentar em seu colo'
"Sou uma sobrevivente de abuso sexual. Aos sete anos, fui estuprada por um padre na escola católica onde estudava, em Los Angeles. Durante décadas, tive quase nenhuma lembrança do episódio. Foi como se tivesse me dissociado do trauma para poder continuar vivendo. Mas hoje me lembro de cada detalhe, e conto minha história para ajudar outras vítimas.
Quando eu era criança, minha mãe trabalhava como secretária na casa paroquial, bem em frente à escola. No dia em que sofri o estupro, me lembro de ter ido encontrá-la e a avistei conversando com algumas pessoas. Acabei me entediando e entrei por uma porta que levava a um auditório.
Estava tudo escuro. Deviam ter passado algum filme para os alunos. Me lembro de avistar um projetor. Achei fascinante ver aquelas rodas girando de um lado para o outro e me aproximei.
Percebi que havia alguém ali, um padre. Eu não o conhecia, mas sabia quem era. O padre George Rucker.
Ele fez um sinal para que eu me sentasse em seu colo. Na escola, aprendemos que padres são homens de Deus, então não havia motivo para temê-lo.
Quando me ajeitei no colo de Rucker, ele colocou a mão por debaixo da minha saia e me penetrou com os dedos. O abuso durou uns 10 minutos, talvez 15. E então ele tirou os dedos de dentro de mim e foi embora.
Naquele dia, foi como se eu tivesse saído do meu próprio corpo. Tive uma espécie de dissociação, como se uma névoa me turvasse a vista. Os abusos continuaram por cerca de dois anos e, a cada episódio, eu me distanciava mais de mim.
'Trauma ficou guardado na memória'
Aos 12 anos, tive meu primeiro flashback. Estava em minha cerimônia de crisma, quando avistei Rucker. Tive um breve lampejo do abuso, mas rapidamente "fui embora" de novo.
O trauma ficou guardado em algum lugar distante na memória e, com isso, consegui levar uma vida relativamente normal. Me tornei freira, e assim vivi por 15 anos. Também trabalhei como professora e, mais tarde, diretora, em escolas católicas, inclusive naquela em que fui estuprada.
Em algum lugar do meu inconsciente, acreditava que enfrentar o abuso seria como confrontar a minha fé. Mas um dia tudo mudou.
Eu tinha 52 anos e era diretora do Departamento de Serviços de Vida Pastoral da Arquidiocese Católica de Seattle. Estava participando de um workshop da igreja sobre má conduta sexual por parte do clero, quando tive um flashback vívido e intenso. Não sei qual frase ou imagem disparou o gatilho. Mas me vi novamente no colo daquele homem e revivi cada detalhe.
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Quero receber'Nunca se desculpou'
Fui para casa, determinada a responsabilizar meu abusador. Liguei para a Arquidiocese de Los Angeles e pedi o telefone de Rucker. Para a minha surpresa, consegui o contato. Hoje acho que não fariam isso. Estão mais cautelosos.
Liguei e um padre atendeu. Perguntei se poderia falar com Rucker, mas desliguei antes que ele pudesse atender. Não sabia o que dizer. Resolvi, então, relatar o estupro à freira que coordenara o workshop.
Depois da denúncia, recebi uma carta do advogado de Rucker. Ele dizia que a minha palavra jamais prevaleceria sobre a do padre. Respondi que se Rucker não se encontrasse comigo, contaria tudo à imprensa. Marcamos uma reunião.
Em nenhum momento, Rucker se desculpou. Pelo contrário. Disse que tive o azar de estar "no lugar errado na hora errada". Alegou que o abuso acontecera uma única vez e que tomava hormônios à época. Não tive a redenção que queria, mas fiquei orgulhosa de mim. A pequena Mary conseguiu falar naquele dia.
Embora o crime já tivesse prescrito, um processo civil foi aberto contra Rucker e a igreja, em 2006. Quatro anos antes, ele fora afastado do cargo devido a acusações envolvendo 16 vítimas. Hoje, sabe-se que abusou de pelo menos 44 garotas.
Durante o julgamento, Rucker invocou o direito de permanecer em silêncio. Destituído de poder, parecia frágil, encolhido. A arquidiocese de Los Angeles concordou em pagar US$ 60 milhões (R$ 310 milhões) às 44 vítimas. Rucker morreu em 2014.
'Trabalho em rede de apoio'
Hoje estou afastada da igreja, mas Deus permanece comigo. Tenho uma esposa e companheira maravilhosa e um trabalho significativo como membro ativo da Snap, a maior rede de apoio a sobreviventes de abusos cometidos por padres em todo o mundo.
Se tenho arrependimentos pelos anos de silêncio? Não. Minhas escolhas me trouxeram até aqui, e gosto muito de quem me tornei."
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