Quitéria e Geíza na TV, Belize Pombal deseja novo imaginário sobre negras

Era 22 de janeiro, já quase no final da estreia de "Renascer", quando Belize Pombal apresentava ao Brasil sua versão da personagem Quitéria.

Aquelas poucas frases ali não faziam jus à grandiosidade que a atriz alcançaria no remake, e que, mais tarde, arrebataria de vez o público em "Justiça 2".

Aos 38 anos, Belize desponta como revelação para o público, mas com uma grande bagagem que começou a ser preparada aos 11, quando se apaixonou pela arte. Seja como Quitéria ou Geíza, a artista tem entregado atuações viscerais para tocar em assuntos muito sensíveis.

Belize Pombal se descobriu atriz ainda na infância e agora brilha na TV com papéis dramáticos no horário nobre e streaming
Belize Pombal se descobriu atriz ainda na infância e agora brilha na TV com papéis dramáticos no horário nobre e streaming Imagem: Catarina Ribeiro

Coincidentemente, ela vive duas mães negras e periféricas com histórias tão diferentes e que, ao mesmo tempo, se entrelaçam pelo contexto social que vivemos, como ela conta nesse bate-papo com Universa.

Tanto "Renascer" quanto "Justiça 2" exigem uma carga emocional muito grande. Como tem sido acessar esse lugares e conseguir "desligar" tudo isso quando acabam as gravações?

Tudo isso se conecta comigo a partir da humanidade mesmo, e mexe comigo por ser uma mulher, por ser negra, por ter nascido e crescido na periferia.

Eu olhei para isso tudo com muita reverência para essas histórias e para essa personagem com muito respeito, tentando a todo momento honrar a oportunidade, a possibilidade de alguma maneira falar, dar voz a tantas outras pessoas que passam, talvez não necessariamente pela mesma situação, mas que, em alguma medida, vivenciam os desdobramentos das questões raciais, sociais e históricas no nosso país.

Para desligar, eu tenho essa percepção de que é trabalho. Quando a gente vai gravar alguma coisa ou quando vai fazer uma peça, é trabalho. O que a gente vive sendo trabalho, como faz parte da vida, sim, acaba tendo interferência no todo. Então, desligar total não, mas é aquele desligar como qualquer outro profissional.

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Você sente que ainda falta espaço para contar histórias do povo negro para além dos personagens serviçais estereotipados e, principalmente nas obras mais recentes, dessas vivências de muita dor e violência?

Eu sinto que a gente está nesse processo que estamos em construção, estamos em obras, em relação a isso também. As coisas são todas conectadas. O fazer artístico tem relação direta com a humanidade, com a sociedade. Então, os avanços que acontecem em um lado têm relação com o outro também, assim como o retrocesso.

É importante que nós tenhamos a oportunidade de nutrir e reformular o imaginário coletivo em relação à presença de pessoas negras na história e na sociedade, ocupando diferentes espaços, sem idealizações e romantizações, mas também sem pejorativização.

Pessoas negras têm a oportunidade de humanização, vivenciando a experiência humana, contando histórias de seres humanos complexos, profundos, com camadas. Ocupando diferentes lugares, não necessariamente o do sofrimento ou não necessariamente da pessoa boazinha, que está sempre ali a serviço e está sempre disposta a cuidar, como, por exemplo, muita gente vê o lugar da mulher negra, de sempre oferecer, mas pouco receber.

Gi Fernandes e Belize Pombal são mãe e filha em 'Justiça 2'
Gi Fernandes e Belize Pombal são mãe e filha em 'Justiça 2' Imagem: Estevam Avellar/Globo
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Enfim, essas repetições precisam acabar ou, pelo menos, em meio ao processo, precisam ganhar dinâmicas novas que favoreçam mais a construção de um imaginário coletivo que venha minimamente diminuir o que é nefasto e nocivo para a nossa sociedade, como, por exemplo, o racismo.

Acho que não é só uma questão de reinvenção, mas de honestidade, partilhar também a grandiosidade do feito de pessoas negras.

A gente não está só contando história inventada para reformular o imaginário, a gente além de reinventar vai também trazer à tona coisas que de fato aconteceram.

Há muita riqueza na comunidade negra no Brasil e no mundo. A gente pode trazer à tona o que já existe e o que faz parte da história e foi fundamental para o nosso desenvolvimento como sociedade.

A Quitéria e a Geíza são mulheres cheias de camadas que propõem reflexões que vão muito além do que está ali nas cenas. Você acha que o público consegue captar com mais facilidade hoje em dia essas complexidades da vida que a ficção retrata?

Eu acredito e espero que sim. Desejo que [essas histórias] venham trazer um movimento interno interessante para cada pessoa que assiste. Pela resposta do público, que, como eu disse, tem sido muito calorosa, sobretudo nas redes sociais, e pela qual eu sou grata demais, isso tem reverberado, sim, com potência.

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Agora, é delicado também entender como essa reverberação acontece. Esse movimento acontece dentro de cada ser, porque essa experiência com alguma obra de arte, seja lá qual for a abordagem, é muito única. E isso é rico demais também, porque eu acho que alimenta uma possibilidade de autonomia e percepção crítica desse exercício.

Eu acho muito interessante quando algo promove esse movimento interno, que convoca mesmo a reflexão de quem está assistindo, e também essa vivência humana através do sentir, isso é muito potente.

A Geíza de "Justiça 2" teve certa inspiração num caso real. Você chegou a falar com a mulher que inspirou a Manuela Dias?

Eu soube por alto também, não conhecia a pessoa, mas sei que teve uma inspiração e na ficção a história ganhou outros desdobramentos. Mas acho isso [de não ter tido o contato] interessante, porque traz infinitas possibilidades para a composição. O texto da Manuela Dias também é muito rico, um presentão para qualquer artista, já vinha com muito corpo, muita carga, informação e vida.

Para além disso, a gente teve também esse período de preparação que foi muito precioso e eu valorizo demais essa composição coletiva que acontece tanto no teatro e no audiovisual, porque realmente a história e as personagens são compostas e contadas através de muitas mãos, do trabalho de muita gente, é impossível fazer aquilo sozinho, não tem a menor possibilidade.

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Por falar em coletivo, as trocas em cena, especialmente com a Leandra Leal e Gi Fernandes, têm sido muito elogiadas. Vocês chegaram a ter encontros ou algo do tipo para desenvolver essa afinidade?

Nós tivemos alguns encontros, houve a possibilidade de encontrar, mas eu tive mais encontros com a Gi, por exemplo, que é maravilhosa. Eu acho que, de alguma forma, essa conexão entre as personagens e a profundidade das relações isso tudo acaba passando um pouco pelo mesmo lugar.

É uma equipe muito rica, profissionais com uma trajetória bastante contundente, consistente, e atores e atrizes maravilhosos.

Acho que esse conjunto de esforços para além da preparação, que também foi para mim muito importante, tudo isso acabou fazendo com que o resultado apontasse e caminhasse para esse lugar em que as relações têm também consistência, humanidade e transmitem isso de alguma forma.

Como foi fazer o remake de "Renascer"? Você chegou a falar com a Ana Lúcia Torre sobre a primeira versão da Quitéria?

Não tive a oportunidade de conhecer ou conversar com a Ana Lúcia. Assisti a "Renascer" há bastante tempo e foi uma novela que me marcou muito, super importante para a história da TV brasileira. A gente tinha um preparador de elenco tanto na série, quanto em "Renascer". Na novela tivemos uma preparação com diferentes preparadores.

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Tanto para questão corporal, para o estudo do texto, prosódia, trabalhando a fala, etc. Foi uma preparação fundamental também, me nutriu muito para encontrar possibilidades e começar essa investigação que também continua durante as filmagens.

A gente continua descobrindo [a personagem], até porque a partir daí você entra em contato com outras camadas e outras proposições de diferentes áreas e profissionais que também compõem essa história. O texto do autor, os objetos, o figurino, etc. Então tudo acaba trazendo elementos que nutrem a gente, desde o início do processo até o fim.

O fim desse ciclo com Quitéria e Geíza mostram pontos de semelhanças e, ao mesmo tempo, diferenças muito contundentes. Como você enxerga as duas?

São mulheres que passam por dilemas que têm relação com a maternidade e também com questões de gênero, raça, classe. Mas são momentos, lugares e contextos diferentes. Acho que tem as proximidades humanas e contemporâneas e, ainda assim, isso tudo é permeado pelas peculiaridades da história de cada ser.

Em um post do ano passado, você falou sobre sua relação com a arte e como ela fazia você se sentir plena. Depois de toda essa repercussão existe um sentimento de realização junto aos outros que você nutre pela profissão?

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Eu me sinto feliz, abençoada, grata, com momentos de muita realização, sim, mas eu acho que essa é a trajetória da vida mesmo, que abarca também a esfera profissional.

É de aprendizado constante, então eu não tenho a sensação de estou realizada e ponto, sabe? Acho que estamos nos realizando ao longo da vida, e profissionalmente também.

Estou muito feliz, de gratidão e plenitude com esse momento, mas eu sei que é uma parte de uma trajetória, assim como os momentos anteriores também foram, cada um na sua dimensão, na sua medida, mas esse momento também é um momento importante, pelo qual sou grata, e parte de uma trajetória, se Deus quiser, de ser frutífera e boa.

Nessa mesma publicação, você também enaltece todas as pessoas que vieram antes de você. Como foi crescer olhando para a representatividade negra na TV?

Foi muito importante, porque você vai se dando conta de que é possível. É delicado você não ter a percepção de que outras pessoas parecidas com você alcançaram lugares que você gostaria de alcançar, ocuparam lugares que você gostaria de ocupar, ou vivenciaram experiências que você gostaria de vivenciar.

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Então, isso exige uma força extra quando você não tem uma representatividade tão vívida, tão presente. À medida que outras pessoas que, por diversas razões e motivos e características, se assemelham a gente e estão ali representando, ocupando espaços importantes, isso nutre e fortalece muito, sem dúvida alguma.

Seu próximo projeto é o filme "Vítimas do Dia". O que você pode adiantar sobre a produção e a personagem?

É uma outra mulher, num outro contexto, uma história forte e intensa, que está em conexão muito fortemente com o personagem do Amaury Lorenzo. Não tem relação com a maternidade exatamente. Acho que isso já traz outros elementos também, porque as histórias anteriores tinham essa conexão forte, o que era lindo, mas não é o ponto chave da história dessa personagem agora.

Eu ainda não sei esses detalhes sobre data [de estreia] e tal, mas eu acho que não demora muito para a gente poder assistir.

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