'Vejo personagens de 50 anos amargas', diz atriz com 4 décadas de carreira
Luiza Souto
Colaboração para VivaBem
30/05/2024 04h05
Em Desejos S.A., série que estreou no Star+ em março, seis protagonistas contratam uma empresa que promete realizar sonhos a qualquer momento, mas sob consequências. A personagem interpretada por Gilda Nomacce, 52, é uma empregada doméstica calejada de tanto dedicar a vida a um homem rico e que anseia se livrar dele para viajar a Miami, nos EUA.
Com mais de cem personagens em sua carreira, 21 prêmios e tendo sido homenageada em importantes festivais como o Internacional de Curtas de São Paulo, a paulista de Ituverava, que começou aos 12 anos, conta que por muito tempo alimentou o desejo de ser famosa, apesar de seu extenso currículo. Hoje, seu pedido principal é ver mais mulheres maduras sendo mais bem representadas no audiovisual.
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"Vejo que somos representadas de maneira muito descompassada com a realidade. Já filmei uma série de coisas este ano, estou cheia de energia, e vejo personagens de 50 anos como amargas, sofridas, menopausadas, chorando por alguém", ela exemplifica.
Para Universa, ela fala ainda sobre assédio, a maior presença de mulheres no audiovisual e mais.
Universa: Você daria esse telefonema para fazer um pedido, como sua personagem?
Gilda Nomacce: O ato de telefonar para fazer um pedido é um impulso, e representa a maioria dos lugares que a gente cai. No desespero, você é capaz de ceder a coisas instintivamente, como se fosse uma salvação, mas aí depois tem a contrapartida. Dito isso, eu faria se achasse esse número e pediria para ficar famosa. Tem um custo muito alto, e passo a minha vida refletindo o que é essa estrutura.
Por que esse desejo?
Nesse universo do cinema, embora os temas e a representatividade estejam pulsando, ainda é um lugar muito difícil. É um sistema também opressor, porque ocupo lugares de protagonismo, por exemplo, e não estou na divulgação oficial da série mesmo sendo uma das seis protagonistas. Mas entreguei um trabalho maravilhoso, tenho uma carreira.
Às vezes gastamos uma vida desejando uma coisa que talvez nem tenhamos noção do que vai retornar, e é esse o lugar da precariedade e onde encontro com toda a personagem, porque apesar da minha idade, eu nunca me estabeleci em todas as áreas da minha vida. Eu ainda estou questionando todas as coisas.
Nesses 40 anos de carreira, quais as maiores transformações você presenciou no meio, principalmente para as mulheres artistas?
Muitas transformações positivas. Hoje, quando entro em um set, vejo uma equipe de câmera inteiramente feminina, uma mulher responsável pela direção de arte, além de pessoas trans e negras.
Hoje tem muito mais corpos diversos e histórias sendo contadas, e quero participar desse movimento.
Isso é o que mais me alegra na verdade. Além disso, uma mulher jovem hoje passa por coisas diferentes da minha época, porque ela está mais independente, sem se importar ou mesmo precisar do olhar masculino.
Mas você passou por constrangimentos quando começou?
Sim. Passei por situações muito tristes, como testes dolorosos para mim, assédio, com um desses engodos de pessoas. Acho que por isso a maioria das coisas que eu faço são sem teste. As pessoas me chamam. Mas era muito inocente, tinha 17 anos. Minha maior alegria é ter mantido meu entusiasmo.
A vasta quantidade de plataforma de streaming abriu mais portas para os artistas?
Sim. Vejo que estão gerando uma dramaturgia diferente, contando outras histórias além das da TV aberta. Sei que ali há a expectativa do popular, da beleza padrão. Enxergo, por exemplo, muitos alunos meus contando histórias lindas, mas eles mesmos dizem não ser padrão, e acabam consigo mesmo. Me dá uma tristeza.
Mas no streaming, as narrativas estão mais contemporâneas, mostrando mais lugares como o Acre, onde filmei recentemente, e tem mais corpos diversos também.
Quais os maiores desafios você ainda enfrenta na carreira?
Se eu fosse jovem hoje, com a minha carreira, ia ser muito mais fácil me inserir em uma produção de TV aberta, o que para mim é muito importante. Isso muda tudo, como divulgação e o quanto que eu ganho, mas hoje eu tenho o respeito do meio.
Agora, acho que o maior desafio é me ver representada, pois como mulher madura, vejo que somos representadas de maneira muito descompassada com a realidade. Já filmei um monte de coisa esse ano, estou cheia de energia, e vejo personagens de 50 anos amargas, sofridas, menopausadas, chorando por alguém. Mas também tenho pessoas que escreveram para mim como o Lourenço Mutarelli ("O Grifo de Abdera") e a Juliana Rojas ("Um ramo", premiado no Festival de Cannes). São papéis de mulheres de verdade.
E quais transformações no cinema você gostaria de testemunhar?
Acredito que o cinema já está trazendo mudanças.
As pessoas no meio já não aceitam mais como representatividade, por exemplo, uma preta como empregada doméstica como coadjuvante num lugar mesquinho da existência.
E o que fazer para que o audiovisual se torne mais inclusivo e receptivo com o diverso?
É considerar que todas as pessoas são diversas e entender que a igualdade parte das diferenças. É olhar para o outro sem tentar adjetivar. Para ser afável e acolhedor basta não ter um ponto de partida.