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Autor sobre trans e intersexo em Renascer: 'Ideia é amplificar discussão'

Buba (Gabriela Medeiros) e Teca (Lívia Silva) em 'Renascer' Imagem: Reprodução/Globo

Luiza Souto

Colaboração para Universa

03/06/2024 04h00

Quando decidiu adaptar "Renascer", obra do avô Benedito Ruy Barbosa de 1993, Bruno Luperi, 36, já tinha em mente mudar a personagem intersexo Buba (Gabriela Medeiros) da primeira versão - na época chamada hermafrodita - para uma mulher transgênero, enquanto a trama original seria abordada com o nascimento de Cacau, filha de Teca (Lívia Silva).

Foi acusado de invisibilizar 1% de uma população cuja característica é ter o corpo que varia do padrão de masculino ou feminino, no que se refere a configurações dos cromossomos (testículos que não desceram, pênis pequeno ou clitóris muito grande, vagina ausente entre outros).

Mas nessa entrevista exclusiva a Universa, Luperi explica que a mudança permitirá abordar mais amplamente os dois temas, e focar mais nos desafios e necessidades das pessoas intersexo desde a infância:

Achei mais pertinente ter uma criança intersexo, até por ser uma questão muito sensível na primeira infância, que é quando algumas violências acontecem.

Outra polêmica surgiu quando Mariana (Theresa Fonseca) começou a se relacionar com José Inocêncio (Marcos Palmeira) e o chamava de 'painho'. A associação Vozes de Anjos entendeu isso como apologia ao incesto e entrou com uma ação na Justiça para que a Globo interrompesse essa abordagem. Luperi afirmou desconhecer a ação e ponderou: "Acho que a maneira como a sociedade responde a isso também fala muito mais da sociedade do que da obra."

Ele também comentou sobre a responsabilidade de ressignificar a novela para o contexto atual e a importância de dar mais voz às mulheres:

Um homem é forjado socialmente para ser um idiota, então se a gente não tomar nota disso, acaba criando uma sociedade assimétrica, onde eles vão se tornando opressores.

Buba (Gabriela Medeiros) Imagem: Institucional

UNIVERSA: Por que você mudou a trama da Buba?

Bruno Luperi: Nos anos 1990, Buba foi uma personagem intersexo muito bem recebida pelo público. Hoje, com a agenda LGBTQIA+, entendemos que ela poderia tratar questões de gênero de maneira mais ampla. E achei mais pertinente ter uma criança intersexo, pois essa é uma questão sensível na primeira infância, quando ocorrem violências como intervenções e as pessoas não sabem como tratar.

Então Cacau [a bebê de Teca] vai ocupar esse espaço de discussão, que está sendo assessorado pela Maitê Schneider especificamente na questão de identidade e gênero.

A decisão de a filha da Teca ser intersexo não tem a ver com as críticas que recebeu?

Não. Já era uma provocação dos pesquisadores Felipe Pasini, Dayana Andrade, Gabriel Tonelli e Lucas Ohara, que estão comigo desde "Velho Chico". Eles vieram com essa provocação de trazer a questão com uma criança por ser difícil de destacar com a Buba todo o processo da primeira infância, da família se preparar para receber e acolher uma criança assim. Que as pessoas possam receber Cacau com coração aberto.

A ideia da novela não é sequestrar pautas. Ao contrário, ela quer amplificar um pouco a discussão. Acho que as duas pautas estão bem colocadas conceitualmente e queria que as pessoas recebessem isso bem.

Du (José Duboc) e Teca (Lívia Silva) Imagem: Beatriz DAMY

Mas você chegou a conversar com a comunidade intersexo principalmente depois da polêmica inicial?

Sim e deu para sentir o quanto é raro esse assunto na dramaturgia e no audiovisual de forma geral. Então, ao tomar a decisão de trazer a Buba como uma mulher transgênero, sabia que poderia incorrer em algumas críticas, mas imaginava que quando chegasse nesse momento da trama com o filho da Teca, isso acalmaria um pouco.

Imagino que um personagem extremamente raro e caro para a comunidade possa ter gerado um certo sentimento de perda para eles, mas espero que a Cacau venha trazer um pouco também de alívio.

Sentiu que precisava dar mais atenção para alguma outra trama para contextualizar com os dias de hoje?

Toda novela foi repensada para fazer sentido nos dias de hoje, então todos os personagens foram ressignificados. A Inácia (Edvana Carvalho), por exemplo, vem com uma nova camada que é a questão de mediunidade e espiritualidade, o padre vira pastor, o Egídio (Vladimir Brichta) acaba se tornando um atravessador do cacau, mais do que um produtor.

Acho que a beleza no trabalho do autor é você deixar uma cicatriz menos profunda, mas está tudo completamente ressignificado. A decisão de fazer um remake já traz na esteira um monte de mudanças, e algumas acabam ganhando mais luz na mídia, como a questão da Buba, que é polêmica.

A relação entre Mariana e José Inocêncio foi alvo de ação judicial porque viu-se como um incesto. Como recebeu isso?

Mariana (Theresa Fonseca) e José Inocêncio (Marcos Palmeira) Imagem: Globo/Angélics Goudinho

Não acompanhei, mas a Mariana é uma menina que teve o curso da vida determinado por conta das ações do José Inocêncio, quando ele comprou a fazenda do Belarmino (Antonio Calloni) por um preço baixo e soltou a Nena (Quitéria Kelly), que é a avó dela, e os filhos pequenos no mundo à própria sorte. E o José Inocêncio olha para aquela menina e se enxerga culpado, ou pelo menos responsável pela falta de sorte que ela teve na vida.

A Mariana encontra nesse cara um pai do ponto de vista psicológico, uma proteção e uma segurança que ela não teve. É natural que ela olhe para aquele cara e se refere a ele como 'painho'. Mas a personagem sempre foi repreendida por quem estava ao redor. Isso nunca foi naturalizado. Acho que a maneira como a sociedade responde a isso também fala muito mais da sociedade do que da obra.

Assim como em Pantanal, suas personagens têm diálogos bem femininos. Vimos no início a Jacutinga (Juliana Paes) falando para a Maria Santa (Duda Santos) não se dobrar para qualquer homem, os diálogos da Sandra (Giullia Buscacio) com a mãe, Dona Patroa (Camila Morgado), que por sua vez se libertou daquele relacionamento tóxico com Egídio.

Como é dar voz a essas mulheres sem deixar a cultura machista contaminar a trama?

Além do privilégio profissional de mexer no texto do autor que eu mais admiro e daquele que é responsável por eu estar aqui hoje, tem uma jornada pessoal. Quando a gente escreve num nível industrial, a gente não consegue esconder muito quem está por trás. Pegar o trabalho dele é de alguma maneira pegar os valores que me foram passados do berço. E tive a possibilidade de olhar para esses valores e pensar o que quero passar para meus filhos.

Vejo que tem muita sabedoria ali mas também coisas que talvez não façam tão bem.

Um homem é forjado socialmente para ser um idiota, então se a gente não tomar nota disso, acaba criando cada vez mais essa sociedade assimétrica, onde eles vão se tornando opressores. E eu acredito que a novela tem esse compromisso, como tinha lá atrás, de olhar para o nosso tempo e apontar o que está sendo narrado.

Partindo do pressuposto de que somos um país machista, racista, transfóbico e homofóbico, o primeiro passo é reconhecer, e a novela vem com esse papel. Eu senti muito isso ao longo do processo já em Pantanal, de dar voz à mulher e ter personagens que foram se soltando.

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