'Pensei em me matar': estupro virtual cresce sem lei específica de combate

Camila*, 18, de Diadema, em São Paulo, entrou em 2020 num aplicativo para conhecer pessoas e conversar sobre séries de TV. Acabou sendo vítima de estupro virtual, um crime que se tornou foco de um projeto de lei em tramitação na Câmara.

Nos últimos seis anos, em São Paulo, os registros de casos semelhantes aumentaram 12 vezes - de três boletins de ocorrência (BOs) em 2017 para 35 em 2023. No auge da pandemia, em 2020, a polícia registrou 45 casos.

A jovem relata que conheceu uma pessoa na internet que, instantaneamente, pediu fotos nuas. Ao negar, recebeu montagens de suas fotos publicadas nas redes sociais, mas sem as roupas que ela usava. Para não divulgar as imagens, o criminoso a chantageou.

Fiquei à mercê dele. Qualquer coisa que quisesse fazer comigo, ele fazia. Tinha que abrir chamada de vídeo, assistir pornô e fazer coisas nojentas que nunca tinha visto, e às vezes colocava outras pessoas na chamada. Ele me fazia tirar a roupa na frente das câmeras, com amigos dele vendo. Tinha que ficar de pernas abertas. Uma vez ele pediu para enfiar um controle dentro de mim. Era um terror psicológico tão grande que eu não conseguia parar, porque eu não queria que aquelas fotos falsas fossem divulgadas, detalha Camila.

Vergonha impede denúncia

A vergonha e o medo de que sua mãe não acreditasse na sua história impediram Camila de buscar ajuda. Ela contou apenas a um amigo próximo, que a aconselhou a trocar o chip do celular e apagar suas redes sociais. Antes, guardou todas as mensagens trocadas com o criminoso e ameaçou denunciá-lo, mas foi convencida a apagar as provas após ele prometer não fazer mais nada.

Tentou esquecer a história:

Pensei em me matar várias vezes, e não confiava em ninguém. Ele ficou quase um ano sem aparecer, até que mandou mensagem numa página que mantive só para falar de livros. Do nada, disse que estava na igreja, que tinha mudado e pediu desculpas. Eu não aceitei porque ele já tinha feito aquilo antes.

Hoje, Camila fala sobre isso sem chorar. Ela acredita que ele possa ter divulgado imagens em algum site, mas se aparecerem, ela se sente forte para contar.

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Camila não denunciou porque não tinha mais detalhes sobre a identidade do criminoso e achou que não daria para identificá-lo. No entanto, o Brasil dispõe de tecnologias que ajudam a polícia a localizar os autores desse tipo de crime, como garante o delegado Daniell Pires Ferreira, do Piauí.

Ferreira realizou a primeira prisão por estupro em ambiente virtual no país, em 2017. Dois anos antes, uma ação dele culminou no primeiro bloqueio do WhatsApp no Brasil, devido à recusa do aplicativo em fornecer informações para sua investigação.

Em 2022, o Piauí registrou 35 crimes sexuais no meio virtual, como assédio, estupro e importunação. Em 2023, esse número saltou para 65, e em 2024, até maio, já foram 20.

Por que é estupro

O criminoso preso por Ferreira, que era técnico em informática, acessava o computador da ex-namorada e registrava seus momentos íntimos. Com as imagens, criou uma página virtual e ameaçou divulgá-la, associando-a até a página da escola do filho da vítima, caso ela não fizesse mais conteúdo. O modus operandi foi similar ao caso de Camila.

"Ele pedia para ela dançar nua e introduzir objetos na vagina", detalha Ferreira, que já trabalhou na inteligência da Secretaria de Segurança Pública do Estado e na delegacia de repressão aos crimes de informática.

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Ferreira explica que, após uma quebra de sigilo telemático decretada pelo Judiciário, levou um mês de investigação para identificar o autor do crime. Ele concluiu tratar-se de estupro porque o homem praticou todos os atos previstos no artigo 213 do Código Penal - constranger alguém mediante violência ou grave ameaça para ato libidinoso, a fim de saciar sua lascívia.

Dessa forma, está configurado o estupro em ambiente virtual, afirma Ferreira.

Crime ainda sem castigo

Esse caso inspirou o Projeto de Lei 1891/23, que prevê penas para o estupro virtual equivalentes às do estupro e estupro de vulnerável, podendo chegar a 10 anos de reclusão. Ferreira considera importante uma lei específica para esses casos, mas alerta que não se trata de um novo crime.

*nome alterado para preservação da identidade da vítima

"Hoje, a lei existente não atende a esse tipo de caso que a internet trouxe, e nos Estados Unidos está sendo chamado de extorsão sexual. Estão tentando criar um tipo penal para tabular algo que está acontecendo e que não tem pena específica", opina Ferreira, que também é professor de Direito.

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Nossas relações de convivência e de consumo estão migrando do mundo físico para o virtual. Hoje, não tenho dúvida de que os crimes, quase na sua totalidade, estão conseguindo migrar também. Mas, felizmente, a internet deixa rastros e costumo dizer que o rastro que o crime virtual deixa às vezes é até melhor para investigar do que num ambiente físico.

Sobre os casos em São Paulo, a Secretaria de Segurança Pública do estado assegura que realiza um trabalho contínuo para reduzir a subnotificação desses crimes, inclusive com ações para estimular a denúncia contra agressores. Em nota, o órgão afirma:

"O Governo de SP ampliou o atendimento 24 horas para mulheres vítimas de violência doméstica, incluindo os casos de estupro virtual, em todo o estado. Com isso, São Paulo passou a contar com 141 salas de Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) para atendimento ininterrupto, por videoconferência, nos plantões das unidades territoriais da Polícia Civil, além das 140 DDMs territoriais já existentes e a DDM On-line, que também está acessível 24 horas por dia para o registro de ocorrências e solicitação de medidas protetivas a partir de qualquer dispositivo conectado à internet. A pasta realiza um trabalho contínuo para reduzir a subnotificação destes crimes, inclusive com ações para estimular a denúncia contra agressores."

Centro de Valorização da Vida

Caso você esteja pensando em cometer suicídio, procure ajuda especializada como o CVV (Centro de Valorização da Vida) e os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) da sua cidade. O CVV funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados) pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil.

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