Muito antes de Naomi: 'Estrela Negra' foi a primeira manequim do Brasil
A baiana Luana não é muito conhecida no Brasil, mas na Europa ela é um ícone da moda há décadas.
Considerada a primeira manequim negra brasileira a conquistar aclamação internacional, muito antes da supermodelo britânica Naomi Campbell despontar para o sucesso, Luana de Noailles revelou a beleza da mulher negra para o mundo nos anos 1960 e abriu portas para outras modelos pretas nas passarelas. Black is beautiful!
Nascida Simone Raimunda, em 1949, oriunda de uma família simples de Salvador, ela construiu uma carreira bem sucedida nas passarelas da Europa, e se tornou conhecida como Luana de Noailles.
A moda entrou em sua vida por acaso aos 16 anos, ainda em Salvador, pelas mãos do costureiro Di Carlo, e logo depois foi descoberta por uma empresa francesa popular no país, "veio a Copa do Mundo na Inglaterra (1966) e a Rhodia queria uma negra, nada melhor do que procurar na Bahia né, e eles me convidaram para desfilar em São Paulo".
Ao conhecer Paco Rabanne em solo brasileiro, comentou que gostaria de ir para o 'velho mundo', o estilista não a encorajou a ir naquele momento, "se quiser ir vá, mas negro não está em moda na Europa", aconselhou ele, logo depois eles se tornaram grandes amigos.
Anos mais tarde, ele declarou a um jornal francês: "Quando ela manifestou o desejo de vir para Paris, a convenci a não fazer isso, sabia dos problemas que ela teria na moda por sua tez; mas ela veio, participou da minha coleção, e foi um sucesso imediato".
Após uma breve passagem pela Itália, ela foi para Paris aos 18 anos, morou sozinha no quarto andar de um hotel sem elevador e sem falar o idioma francês, mas sentia-se livre. A barreira da comunicação foi superada com a leitura diária de jornais locais como France Soir e Le Monde durante meses que serviram como aulas para a jovem brasileira.
Alta (1,76m), dona de olhos expressivos e uma elegância genuína, ela encantou os estilistas mais renomados da época, e revolucionou o universo da moda entre os anos 1960 e 1970, desfilando para as principais grifes como: Yves Saint Laurent, Chanel, Christian Dior, Givenchy, Valentino e, claro, Rabanne, que logo a convidou para os seus desfiles ao saber de sua chegada.
Além das passarelas, ela também estampou diversos editoriais de moda para as revistas mais conceituadas.
Da Bahia para a aristocracia francesa
O casamento com o conde francês Gilles de Noailles em 1977, membro de uma família aristocrata, a tornou conhecida como a Condessa de Noailles.
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Quero receberEles se conheceram em 1972 e namoraram durante cinco anos. Dezenas de convidados ilustres entre franceses e brasileiros estavam presentes na cerimônia, um deles, a veterana atriz Vera Gimenez, mãe da apresentadora Luciana Gimenez.
Seu vestido de noiva foi especialmente desenhado pelo estilista francês Andre Courrèges para a cerimônia de casamento realizada no castelo da família, e Rabanne foi um dos padrinhos. A vestimenta confeccionada em tecido de algodão, bordado sobre organza e seda, hoje faz parte do acervo do Museu Afro Brasil, localizado em São Paulo.
O título de nobreza não apagou a sua simplicidade, "não tinha dimensão do que representava naquela época, não tinha a mínima ideia".
Com uma voz suave, ela contou por telefone a Universa de Paris, que nunca se iludiu com os holofotes do mundo fashion, mesmo sendo uma referência na alta costura.
Além de estilistas famosos, ela também esteve em festas e jantares com celebridades do cinema mundial, como o ator e cantor francês Alain Delon.
Quando vim pra Europa ainda jovem, eu apenas queria trabalhar e faturar, nunca quis ser uma estrela, em toda minha vida sempre quis trabalhar e ter a minha independência, sempre fui pé no chão.
Luana jamais esqueceu as suas raízes, veio ao Brasil inúmeras vezes para rever a família, os amigos e participar de eventos importantes, em um deles, levou a escola carioca Beija-Flor a vitória no Carnaval de 1983.
A condessa foi uma das homenageadas no samba-enredo "A Grande Constelação das Estrelas Negras", ao lado de Clementina de Jesus, Grande Otelo, Pelé (único ausente no desfile) e Pinah. O carnavalesco Joãosinho Trinta, fez um tributo a personalidades negras, e Luana veio como destaque em um carro alegórico um ano antes da construção do sambódromo.
Preconceito na moda
Questionada se em algum momento sofreu discriminação na moda, ela relembrou seu início de carreira no Brasil, "quando estava na Rhodia, passei um ano sofrendo racismo deles, porque as grandes companhias que trabalhavam pra ela achavam que eu negra, não era um produto que se vendia, por isso, às vezes a Rhodia me pagava sem eu trabalhar".
Sentindo-se desvalorizada pelo universo da moda nacional, ela buscou outros horizontes, "foi aí que mandei beijos pra eles (Rhodia) e vim para Europa". Luana era a única manequim negra do casting da Rhodia.
Alguns soteropolitanos também duvidaram do potencial dela, quando Luana deu seus primeiros passos na moda nos anos 1960.
Tinha um pessoal na Bahia que dizia assim 'essa neguinha é bonitinha, mas da Bahia não passa', e hoje eles me adoram, relembra ela esbanjando bom humor.
Luana não guarda ressentimentos, pelo contrário, aborda qualquer assunto com um sorriso na voz e serenidade.
O saudoso amigo Rabanne, relembrou em uma entrevista o magnetismo de sua amiga e também estrela de seus desfiles:
"Assim que adicionei som aos desfiles, ela se destacou mais, era uma dançarina incomparável, e sempre estava a vontade em qualquer circunstância; desde então, seria impossível para mim apresentar uma coleção sem uma modelo negra", declarou no passado, o estilista falecido em 2023, aos 88 anos.
A despedida das passarelas
Em 1980, Luana decidiu pausar a carreira após muito trabalho mundo afora entre as décadas de 1960 e 1970; seus últimos desfiles foram nos Estados Unidos e Alemanha. A maternidade veio em seguida, e ela deu à luz a Matthieu, seu único filho.
A um jornal francês ela declarou na época:
"É melhor deixar o palco no auge da fama, assim deixamos boas recordações e ainda somos jovens para começar outra coisa ou em outro lugar.
Mas ela não se afastou de Paris e muito menos da moda, lançou uma linha de roupas no Brasil, com modelos desenhados por ela.
"Foi uma coleção, fiz o desfile em Salvador e nas Antilhas (arquipélago da América Central), na verdade, foi uma ideia do Rabanne que disse 'por que você não lança uma linha? Você tá sempre cheia de imaginação'", relembrou aos risos; comentando em seguida que não levou muito a sério o negócio, e anos depois, com Di Carlo, lançou uma coleção.
Luana também atuou como consultora de moda em Paris, "foi uma fase divina na minha vida, e ali me encontrei, passei quatro anos trabalhando com moda masculina".
Sobre o último desfile, ela relembra uma cena curiosa, esclarecendo que a motivação não foi cansaço e muito menos idade, mas que gostaria de encerrar a sua trajetória em grande estilo: descendo uma escadaria.
Quando cheguei no hotel George V, havia uma escadaria divina, ali decidi encerrar, eu e outra modelo sueca fizemos um desfile cruzado, e quando fomos até o final da passarela, lá estava a Gina Lollobrigida, e aí encerrei com chave de ouro, contou a Universa.
"Rainha de Mil Facetas"
Luana ainda mantém uma relação estreita com a moda de modo geral, uma de suas melhores amigas, é a ex-top model brasileira Mira Fonseca, que fez muito sucesso na Europa na década de 1980, "ela veio depois da minha geração, e trabalhou para estilistas maravilhosos daqui, nós somos como duas irmãs, rimos bastante e curtimos muito".
Aos 75 anos, viúva duas vezes e vivendo em Paris, a condessa de Noailles nutre uma paixão pelas duas pátrias, a que nasceu e aquela que a acolheu aos 18.
Sua figura singular nas passarelas da Europa, abriu caminho para a presença de modelos negras em desfiles e editoriais de moda, algo incomum na época. A pérola negra da Bahia, ou melhor 'rainha de mil facetas' como era chamada por Rabanne, revela uma modéstia poucas vezes vista em personalidades que se destacam.
Quando olho pra trás, fico contente, tenho orgulho, mas apenas fiz a minha parte, assim como um beija-flor, voei com o meu biquinho semeando um pouco de água em cima do fogo.
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