'Nunca acham que a única mulher da sala é a chefe do navio'

Quando uma grande embarcação se aproxima de um porto brasileiro para atracar em um cais, 15% delas são comandados por mulheres. Exercida majoritariamente por homens, a profissão de comandante de grandes embarcações é uma das que possui maior disparidade de gênero, entre homens e mulheres.

Dados da Marinha do Brasil apontam que dos 5.577 Oficiais de Náutica em atividade no país, 880 são mulheres e 4.697 homens.

Contudo, nos últimos anos essa diferença tem diminuído. Isso porque com a presença das primeiras mulheres nos postos de comando de grandes embarcações, o interesse feminino para ser comandante de navios tem crescido.

Para se ter uma ideia:

Em 2014, a Marinha do Brasil tinha 75.709 militares, sendo 7.459 militares do sexo feminino (9,85%).

Já em 2024, do total de 74.082 militares, 8.540 militares são do sexo feminino (11,52%).

Única mulher na sala e chefe

Tábata Graña Puentes da Silva
Tábata Graña Puentes da Silva Imagem: Arquivo pessoal

Tábata Graña Puentes da Silva, 35, moradora do Rio de Janeiro, é uma delas. Comandante de navios mercantes da Transpetro, Tábata enfrentou uma saga de aproximadamente dez anos de estudos e treinamento até poder ser chamada de comandante pela primeira vez.

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"Entrei na Marinha Mercante por acaso, não tinha parentes ou amigos próximos nesse meio. Por ser filha de militar, os concursos militares acabaram sendo um caminho natural."

Atualmente, Tábata comanda o navio José Alencar, que transporta produtos derivados de petróleo, como gasolina, diesel e querosene de aviação pela costa brasileira.

Ao ser questionada se ainda enfrenta estereótipos por ser mulher no posto que ocupa, ela diz que, infelizmente, sim, mas que tem percebido uma melhora a partir do crescimento de mulheres exercendo o mesmo posto que ela.

Geralmente, sou a única mulher na ponte de comando da embarcação, que chamamos de passadiço. Quando estamos prontos para manobrar e os práticos embarcam para realizar esta atividade conosco, sempre se espantam quando sou apresentada pelos oficiais como a comandante do navio. Tábata Graña Puentes da Silva

"Para muitos, é sempre improvável que a única mulher da sala seja a chefe. Mas procuro sempre quebrar o gelo e levar na esportiva. São muitos anos trabalhando nessa atividade, que ainda é muito masculina", diz.

Nadando contra a maré

Daisy Lima
Daisy Lima Imagem: Arquivo pessoal
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Daisy Lima, 43, de Fortaleza, também precisou nadar contra a maré para conseguir alcançar o posto de comandante de um navio cargueiro da Aliança Navegação e Logística.

Mas os percalços não lhe desanimaram de se tornar a primeira brasileira a comandar um navio porta-contêineres do país.

No início, precisei driblar algumas barreiras, como a dúvida se mulheres poderiam exercer tarefas a bordo da mesma forma que os homens. Sempre existia a sensação de que precisava provar que a presença feminina em um navio também dá bons resultados. Mas com o tempo, a partir de muito trabalho, esse estigma foi caindo e, hoje em dia, uma mulher no comando de um navio é visto de uma forma mais natural. Daisy Lima

Comandando o navio Aliança Leblon, que fica na costa do Nordeste, Daisy brinca que quem almeja ser comandante pode sonhar com tudo, menos com rotina.

"Dizemos que o comandante não tem horário fixo e acaba sendo um cargo de 24 horas, pois temos a parte administrativa que temos que organizar, manobras do navio que não tem horário, emergências que podem acontecer e os constantes treinamentos. Tudo isso demanda constante busca por conhecimento", afirma Daisy.

Além de embarcar cargas pela costa brasileira, Daisy já teve a experiência de realizar viagens de longo curso, como são conhecidas as viagens internacionais.

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"Hoje, graças a Deus, temos mais mulheres e lideranças femininas no setor marítimo e as redes sociais têm ajudado muito na divulgação do nosso trabalho", afirma Daisy.

Futuras comandantes

No Brasil, a Marinha é a responsável pela formação das futuras comandantes de navios.

Para se tornar uma comandante, a candidata precisa percorrer uma espécie de escada em que cada degrau consiste em uma etapa de formação teórica e prática, que chega a durar aproximadamente dez anos.

Ana Catharina
Ana Catharina Imagem: Arquivo pessoal

Ana Catharina Bastos Cardoso, 23, do Rio de Janeiro, é uma das brasileiras que está fazendo este caminho. Ocupando, atualmente, o posto de guarda-marinha na Marinha do Brasil, Catharina destaca que o primeiro exercício a ser feito por quem deseja ingressar na Marinha é de estar disposto a ter de abdicar de tempo com sua família para desempenhar as missões.

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Em muitos dos meus aniversários, por exemplo, o meu pai, que também é da Marinha, estava ausente, mas percebi logo cedo o quanto o trabalho dele era importante, muito mais importante do que estar com a família naquele momento. E isto fez crescer em mim a vontade de fazer o mesmo, de 'dar a vida', não só pelo meu país, mas também pelos outros países que necessitam de ajuda humanitária. Ana Catharina Bastos Cardoso

Quem também está trilhando o mesmo caminho é a aspirante Ísis Corrêa Gonçalves, 22, do Rio de Janeiro, que escolheu ingressar na Marinha pela oportunidade de conhecer o mundo através da navegação: "Desbravar o mundo foi algo que sempre me atraiu". Ela conta que a maior dificuldade que teve ao ingressar na Marinha foi a adaptação à nova realidade.

Ísis Corrêa
Ísis Corrêa Imagem: Arquivo pessoal

"Passar de civil para militar é sempre um desafio, pois não é apenas um trabalho, mas, sim, um novo estilo de vida. Praticamente toda a nossa forma de pensar, de agir e de falar é alterada quando entramos nesse meio e essa lapidação não é fácil", explica.

Ao ser questionada sobre qual conselho daria para mulheres que desejam ingressar na Marinha, Ísis diz que a resiliência deve estar em primeiro lugar.

"Ser militar é uma profissão difícil e exige sacrifícios, porém é muito recompensador, pois temos experiências que poucos têm a oportunidade de viver", diz a jovem que sonha em comandar um navio.

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Como ser uma comandante de navio

Para conseguir chegar ao posto de comandante de navio, atualmente, a candidata precisa passar por uma saga que chega a durar aproximadamente 11 anos.

A primeira etapa consiste nos três anos iniciais de estudos nas escolas de formação. No Brasil, os únicos dois centros que realizam essa formação são o Centro de Instrução Almirante Brás de Aguiar, em Belém, e o Centro de Instrução Almirante Graça Aranha, no Rio de Janeiro (RJ).

Formadas, as candidatas embarcam como praticante, em uma espécie de estágio a bordo.

"Nessa fase, é necessário um ano de efetivo embarque para finalizar esse período de estágio que deve ser cumprido a bordo com a supervisão e avaliação dos oficiais de bordo. Ao final desse período, a candidata se torna Segundo Oficial de Náutica (2ON)", explica Tábata.

Os 2ON, como são conhecidos, são os oficiais encarregados pela segurança e salvatagem do navio. Ou seja, são eles que cuidam de todos os equipamentos de combate e prevenção a incêndio, salvaguarda e resgate no mar.

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Na sequência, para a ascensão de categoria junto à Marinha do Brasil, são necessários mais dois anos de embarque como Segundo Oficial de Náutica.

"A partir dessa formação, viramos Primeiro Oficial de Náutica (1ON), que é o responsável pela navegação, documentação do navio e certificação dos tripulantes. O 1ON é o braço direito do comandante a bordo", diz Tábata.

Dois anos depois de embarcada como Primeiro Oficial de Náutica (1ON), a candidata a capitã pode ingressar no curso de Aperfeiçoamento para Oficiais de Náutica (APNT). Nesta fase, a oficial retorna para uma das duas escolas de formação do Brasil para nova qualificação.

Ao final do curso, a candidata atinge o sonhado posto de Capitão de Cabotagem (CCB). Nesta categoria, a oficial está apta a assumir a função de comandante em navios na costa do Brasil (cabotagem).

Por fim, ao ter se tornado Capitão de Cabotagem, com mais dois anos de estudo, a candidata pode conseguir o título de Capitão de Longo Curso, que é quando ela estará apta para comandar navios em viagens para o exterior.

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