'Ilegal na teoria, legal na prática': como funciona o aborto em Israel
Do UOL, em São Paulo
21/06/2024 04h00Atualizada em 21/06/2024 16h00
Enquanto o Congresso Nacional discute o agravamento da punição para pessoas que realizarem aborto no Brasil, a descriminalização do procedimento para mulheres já é assunto superado em Israel — tido como referência de Estado-nação por grupos direitistas, conservadores e religiosos brasileiros.
A avaliação é de Daniela Kresch, mestre em Políticas e Práticas Internacionais e correspondente do Instituto Brasil Israel (IBI), que vive há 23 anos no país do Oriente Médio.
O que acontece é que, em Israel, existe uma realidade teórica e prática. Teoricamente, o aborto aqui é proibido pelas Leis Básicas, que funcionam como uma espécie de Constituição. Acontece que existem tantas exceções à regra que ele acaba sendo, na prática, legalizado. [...] E o assunto aqui não gera polêmica e nenhum tipo de polarização. Daniela Kresch
Como é a lei de Israel
A lei que proíbe o aborto em Israel é de 1977, mas, nos últimos 47 anos, as exceções aos casos ilegais só aumentaram, de acordo com Kresch. Hoje, entre os casos em que a pessoa é autorizada a abortar, estão:
- Se tiver menos de 18 anos ou mais de 40 anos;
- Se não for casada ou a gravidez não tiver sido concebida dentro do casamento;
- Se a gestação for o resultado de relações ilegais de acordo com a lei penal, ou incestuosas;
- Se o feto estiver suscetível a deficiência física ou mental;
- Se a continuidade da gravidez puder colocar em perigo a vida da mãe ou causar-lhe danos físicos ou emocionais.
Nesses casos, o aborto, mesmo após a 24ª semana, é gratuito em clínicas e hospitais do governo israelense, que atendem os diferentes tipos de planos de saúde estatais — obrigatórios à população local, segundo Kresch.
Comitês de autorização
Para realizar o aborto, a gestante tem de passar por um comitê de autorização composta por ao menos três membros — dois médicos obstetras ou ginecologistas e um assistente social — sendo que um deles deve ser uma mulher, explica Kresch. No caso de gestações que ultrapassam a 24ª semana, a comissão é formada por mais profissionais.
"Praticamente 98% de quem busca o aborto tem ele autorizado pelo comitê. Os outros 2% são os que não entram nessas exceções, como a mulher que é casada, tem mais de 18 anos e engravidou. Esses casos são mais complicados (...) e há mulheres que reclamam que essas exceções não são suficientes", ressalta a correspondente.
Mesmo com a permissão para grande parte dos casos, existem no país clínicas privadas que realizam o aborto sem autorização legal. "E isso é realmente proibido", aponta Kresch em artigo publicado no site do Instituto Brasil Israel. "Mas, caso essas clínicas sejam encontradas pelas autoridades, as mulheres não são presas ou julgadas. O crime recai sobre o médico, que pode ir para a cadeia por cinco anos", segue o texto.
Em geral, quem procura essas clínicas são mulheres que têm medo ou vergonha de se apresentar aos comitês de autorização. Algumas vezes, mulheres casadas com menos de 40 anos simplesmente não querem ter um bebê, mesmo que ele não tenha sido concebido de acordo com as exceções à lei. Trecho de artigo assinado por Daniela Kresch ao IBI.
'Acordo tácito'
Segundo Kresch, a questão do aborto em Israel segue uma espécie de "acordo tácito" (não oficial) entre judeus ortodoxos, mais conservadores, e os seculares — que são maioria no país e se identificam como judeus, mas com pouca ou nenhuma atenção aos aspectos religiosos do judaísmo.
Há uma espécie de respeito mútuo e um acordo tácito de entender que, pela lei, é ilegal, e isso agrada os mais religiosos, mas, na prática, se você realmente quer, você vai conseguir. Então, na verdade, esse modelo meio que agrada a todos, (...) é uma maneira que os israelenses usam para acomodar esses dois tipos de público. Daniela Kresch
Em seguida, ela completa: "E mesmo quando a gente fala de religião, pela religião judaica, o aborto não é tão tabu quanto muitas vezes é no cristianismo ou pentecostalismo, por exemplo. (...) Existe uma espécie de inteligência rabínica relacionada a isso que coloca a família, o bem-estar da unidade familiar e do casal acima dessa máxima automática de que seria assassinato abortar".
Para além dos judeus
Para o coletivo Vozes Judaicas por Libertação, no entanto, "não é possível falar de Israel como um paraíso dos direitos reprodutivos pensando somente na legislação do aborto e nas pessoas que têm livre circulação no país".
O grupo, formado por judeus não sionistas, entre os quais estão professores universitários, educadores, ativistas e empreendedores, considera que Israel não olha para os direitos reprodutivos de todas as mulheres que vivem em território ocupado, principalmente para as que estão em Gaza.
Entendemos que direitos reprodutivos envolvem um conjunto de possibilidades e conquistas muito maior do que a interrupção da gestação. Por exemplo, há décadas a população de Gaza reclama de falta de medicação e suprimentos médicos, inclusive para procedimentos envolvendo uma gestação segura. Trecho de nota do Vozes Judaicas por Libertação enviada à reportagem
A entidade recupera dados da ONU que mostram que, até o fim do ano passado, mais de 50 mil mulheres grávidas viviam em Gaza "sem casa, comida, água potável, medicamentos ou hospitais para dar à luz".
O apoio de grupos conservadores a Israel
Para Daniela Kresch, do Instituto Brasil Israel, a bandeira israelense levantada em manifestações políticas por grupos conservadores e religiosos de direita e extrema-direita no Brasil é símbolo de uma "Israel imaginária".
Essas pessoas ignoram, por ignorância ou má vontade, os outros lados de Israel, que é um país absolutamente gay-friendly, lgbtqia+ friendly, é o país que tem mais restaurantes veganos do mundo, é uma sociedade liberal, democrática, aberta, onde as pessoas discutem muitas coisas. Os gays vivem aqui com total liberdade, apesar de não poder ter casamento gay aqui. Mas eles podem casar em outro lugar do mundo e são reconhecidos aqui. Daniela Kresch
Já na avaliação do coletivo Vozes Judaicas por Libertação, a ideia de Israel como um país democrático e acolhedor "esconde parte importante do funcionamento do Estado Israelense".
Israel é democrático somente para uma parcela específica que habita seus territórios: as judias e os judeus. (...) É verdade, aqueles que acessam os direitos podem viver a vida diante de avanços liberais como o aborto, podem viver com companheiras e companheiros do mesmo sexo, etc. Porém, fora de suas fronteiras muito bem guardadas, a vida sob ocupação militar não tem nada de democrática. Vozes Judaicas por Libertação