'Travesti na família do outro é lindo, mas na sua fica mais complexo'
Em um sobrado datado de 1908, situado em uma das ruas mais emblemáticas da Lapa, zona boêmia do Rio de Janeiro, morou uma personalidade amada e temida, uma figura quase mítica: a travesti Luana Muniz, conhecida como a 'rainha da Lapa'.
Luana ficou conhecida depois que apareceu no programa 'Profissão Repórter', em 2010, e esbravejou a frase "Tá pensando que travesti é bagunça?". No casarão moravam outras mulheres trans que, assim como ela, viviam do mercado do sexo.
Com a morte de Luana em 2017, vítima de uma pneumonia, sua afilhada Darla Muniz, 27, assumiu seu legado, o casarão e as atividades sociais desenvolvidas por Luana. Ela foi uma das fundadoras do projeto Damas da Prefeitura, que capacitava travestis e transexuais para o mercado de trabalho, além de ter presidido a Associação das Profissionais do Sexo do Gênero Travesti, Transexuais e Transformistas do Rio de Janeiro.
Darla recebeu Universa para uma conversa em uma sala com um imenso mural de imagens de Luana em diferentes momentos. Ela esboça os mesmos trejeitos de sua madrinha. Alta, corpo esculpido pelo silicone, unhas longas assim como as madeixas loiras.
Luana viu Darla crescer
"Acompanhei Luana durante toda a vida, eu a estudei desde os seis anos quando toquei a mão dela e disse que unhas maravilhosas", conta. O vínculo entre as duas surgiu antes mesmo de ela nascer, em 1996. A mãe de Darla trabalhava como stripper em uma boate na Lapa, na década de 1970, enquanto Luana atuava na rua.
A amizade entre as duas fez com que a travesti acompanhasse o crescimento da afilhada e de seus três irmãos, que moravam em um prédio antigo ao lado do casarão de Muniz.
Ainda assim, a família não compreendeu quando ela questionou o seu gênero masculino e o acolhimento veio de Luana.
Travesti na família do outro é lindo, mas quando é na sua tudo fica mais complexo. Comecei minha transição sozinha e a única pessoa que me ajudou foi a Luana.
Após três anos difíceis pela perda da madrinha, ela deu continuidade às suas atividades. "Fui atacada por todos por ser muito jovem, achavam que eu queria tomar o lugar dela, não entendiam que não queria estar nessa posição, mas foi conspirado pelo universo para que estivesse aqui hoje", diz.
O Casarão de Luana Muniz abriga 18 pessoas (17 trans e um rapaz não binário) que encontraram ali mais que um teto, um elo familiar.
Darla conduz tudo, coordena os projetos sociais realizados no sobrado para as profissionais do sexo, por meio da Associação das Travestis Prostitutas Sementes de Luana Muniz. Também está em ações sociais externas que auxiliam pessoas em situação de vulnerabilidade social, e ainda comanda um podcast criado recentemente.
Mas ela não trabalha sozinha, sua esposa, Mirella Prado, é seu braço direito em tudo. Juntas há oito anos, a relação já foi alvo de críticas por serem transexuais. "Quem disse que sendo travesti tenho que ficar com um homem? Onde tá escrito isso? É muita ignorância", responde ela engrossando a voz no melhor estilo Luana de ser.
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Quero receberSou uma travesti de 27 anos, presidente de uma associação de uma instituição existente há 45 anos que dá continuidade ao projeto social de Luana Muniz, famosa pela frase: 'travesti não é bagunça'.
Muitas responsabilidades para pouca idade
A tarefa é árdua e os desafios são diários. Um deles é obter a posse definitiva do imóvel de 116 anos. "Supostos herdeiros dizem que são donos e entraram com um pedido de reintegração de posse, mas estamos aqui."
Dona de uma presença marcante, Darla explica, mexendo as longas unhas vermelhas, como funciona o casarão e suas atividades. Nos 15 quartos, localizados na parte dos fundos, moram as meninas que trabalham no mercado do sexo. No espaço da frente, onde estão as áreas comuns, funciona a associação onde acontecem oficinas de maquiagem, corte e costura, rodas de conversa sobre ISTs, atendimento jurídico, de saúde mental, requalificação de gênero (nome social), palestras e eventos.
A Sementes atende 287 pessoas cadastradas (de qualquer orientação sexual) com cestas básicas, cujos itens alimentícios são doados mensalmente pelo espaço cultural Circo Voador. Darla e as meninas fazem a triagem, ficam com uma parte para sua própria alimentação, e a outra vai para a montagem das cestas.
Só pode falar o que é fome quem já passou por ela. Graças a Deus, hoje no casarão não se passa fome porque temos esse apoio.
Mas a demanda pode ir além de comida, e pode incluir até cadeira de rodas e fraldas geriátricas. À noite, como um mutirão, elas caminham pelas ruas do bairro distribuindo um kit com preservativo e gel para as trabalhadoras do sexo.
Indagada sobre como consegue dar conta de tudo sendo tão jovem, ela desabafa: "Tem horas que sento aqui na sala, olho pra essas fotos e choro, é uma demanda gigantesca, além dos pedidos de ajuda do bairro".
Ela explica que às vezes travestis de fora acabam causando problemas na região, e ela é chamada para pôr ordem como uma espécie de xerife da Lapa. "Para a sociedade, travesti é tudo igual, e não é bem assim. A classe inteira é conotada como perigosa devido a meia dúzia. Vamos supor... Se 20% roubam, já acham que 100% é marginal", diz ela que faz parte do conselho de segurança do bairro.
Vidas entrelaçadas e críticas a militância
Assim como sua madrinha, Darla também vive do sexo pago, mas atualmente atende apenas por site, "a prostituição foi boa nos anos 70 e 80, hoje em dia ela está sendo extinta, devido aos aplicativos de encontros, o sexo ficou muito acessível".
Seu início na prostituição se assemelha ao de sua musa inspiradora, e impressiona pela precocidade. "Foi aos nove anos, sempre fui grandona, parecia ter 13, já tinha a malícia da prostituição, ele devia ter 70, ninguém soube."
Foi o início de um caminho que perdura até hoje. Segundo ela, Luana não aceitava nada que fosse ilegal e quando descobriu que a afilhada estava se prostituindo, anos depois, ouviu uma sonora bronca. "Ela me proibiu de ir a todos os hotéis do bairro, e avisava aos donos 'se deixar ela entrar vou chamar a polícia porque ela é menor'."
Darla também não poupa críticas ao movimento, sem dar detalhes ou nomes. Ela afirma existir uma higienização dos termos usados no passado. "Higienizaram a palavra travesti, e jamais quero isso, porque quando você invisibiliza você esquece da história, que começou com as travestis na década de 1960", diz ela salientando que Luana era da segunda geração de travestis.
As travestis do passado não são faladas, as que são agora é a travesti vereadora, a travesti deputada, porque querem esquecer as pioneiras, mas para elas estarem hoje no poder, alguém lá atrás lutou e muitas morreram.
Darla contextualiza argumentando que um dos motivos para a criação do podcast foi dar visibilidade à história do casarão ao longo desses 45 anos. "Não tem a atenção merecida, o movimento oculta essa visibilidade pelo fato desta casa ser um espaço voltado para travestis prostitutas".
Ser travesti é a busca infinita de formas e maneiras femininas, as maneiras você aprende com as mulheres, com as grandes divas, principalmente, e as mulheres que me inspiram são Luana, Roberta Close e Rogéria.
Políticas públicas e empregabilidade
A dona de curvas generosas é vista como uma líder e também conselheira pelas jovens trans que vivem no casarão, principalmente quando o assunto é velhice e prostituição a longo prazo. Para ela, o objetivo das rodas de conversa é dar um norte a essas meninas que, em sua maioria, não possuem um planejamento para o futuro.
"A travesti jovem é linda, e quando a idade chegar? Tem que fazer um pé de meia quando estiver mais velha e cansada da prostituição, porque cansa, desgasta o psicológico, tem horas que você fica enojada".
Por isso ela reforça que pautas como educação e saúde são importantes para ter um foco quando a mocidade passar. E enfatiza a necessidade de políticas públicas para as travestis prostitutas.
Todas queremos estudar, queremos um emprego, mas também queremos respeito nesses locais, é muito complexo dizer que tem emprego para nós, mas essa travesti conseguirá ficar no emprego diante do preconceito que ela sofrerá?
Para a presidente da associação, uma das soluções seria a capacitação de profissionais em todas as áreas, principalmente educação, saúde e segurança pública, para saber lidar com aqueles que estão na ponta. "Nós somos a ponta que ainda estamos nas margens da prostituição."
O futuro das sementes de Luana
Darla tem muitos sonhos, mas sempre pensando no coletivo. Ainda este ano, pretende retomar os estudos e planeja cursar direito. Sobre o futuro do casarão e da associação Sementes, ela tem planos grandiosos. "Quero que este espaço seja tombado e se torne um patrimônio cultural das travestis prostitutas."
Darla não é uma cópia de Luana, como muitos já a rotularam, ela tem personalidade própria e um grande obstáculo pela frente: dar seguimento ao legado e preservar a memória de sua madrinha para que ela não caia no esquecimento. "A história de Luana não vai terminar aqui, e nunca irá, porque depois que eu partir, outra pessoa dará continuidade à nossa história e trabalho", avisa.
O Casarão de Luana Muniz está aberto a visitação e aceita doações de alimentos, roupas, itens de higiene pessoal e limpeza.
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