'Só levam o que cabe em 23 kg': ela desocupa casas de quem deixou Venezuela
A história da venezuelana Mairín Reyes, 65, é feita de partidas. Foi após uma delas que Mairín decidiu criar uma empresa especializada no adeus: 'Soluciono por ti' (Soluciono por você, em tradução livre).
O negócio, na ativa desde 2021, tem como objetivo ajudar pessoas que foram embora da Venezuela e deixaram casas, móveis e objetos pessoais para trás.
Já são 7,7 milhões de venezuelanos em situação de refúgio e migração pelo mundo, segundo a OIM (Organização Internacional para as Migrações). Desse número, 6,6 milhões vivem em países da América Latina e do Caribe —o Brasil tornou-se o terceiro destino mais procurado, atrás apenas da Colômbia e do Peru.
Atualmente a empresa de Mairín é composta por oito pessoas. Além dela, há quatro amigas, aposentadas nas mais diversas áreas —trabalho social, educação, direito e psicoterapia— e três homens.
Desde o nascimento de "Soluciono por ti", a equipe já desocupou aproximadamente 20 casas na Venezuela. A Universa ela contou a sua história.
'Muitos deixavam suas casas'
"Sempre morei em uma cidade próxima a Caracas [capital da Venezuela] e passei a maior parte da vida trabalhando em empresas privadas: na área de telecomunicações, depois em eventos corporativos e paralelamente tive meus próprios negócios, como um salão de beleza com uma amiga. Ela ficou comigo durante dez anos, até tomar a decisão de deixar o país.
Então, comecei a trabalhar gerenciando um restaurante com meu irmão. Mas, depois de um tempo, as coisas começaram a ir mal. Era um momento crucial na história do país, em meados de 2013, porque havia escassez de produtos, não tínhamos onde conseguir mais açúcar, azeite, e o negócio começou a desandar. Decidimos vender o restaurante.
Continuei com a inquietude de fazer algo. Em 2021, uma outra amiga, que também já tinha ido embora do país, me liga dizendo que não via perspectivas de voltar à sua casa. Ela tinha deixado tudo e queria saber se eu poderia ajudá-la a desocupar o imóvel, fazer alguns ajustes, já que a casa tinha infiltração, e selecionar itens pessoais como as fotografias, além de vender parte de seus móveis.
Acho que ali foi o treino para o que viria a ser o 'Soluciono por ti' [Soluciono por você, em tradução livre] mais tarde.
Percebi que havia muitas pessoas que deixaram suas casas abandonadas na Venezuela ao migrarem para outros países. Além de ajudar as pessoas, esse negócio seria uma forma de apoiar os meus gastos aqui.
Me juntei com outra amiga e começamos a tocar a empresa. Ela foi crescendo no boca a boca, com as alianças que fizemos com o tempo. A ideia é que realmente solucionemos essas questões para as pessoas.
É difícil para um migrante em outro país fazer as coisas de forma remota e é preciso se tornar um aliado para apoiá-lo. Nós fazemos um inventário dos itens que foram deixados e temos parceiros que nos auxiliam no destino de cada um deles, além de outros que nos apoiam a fazer os reparos necessários nos imóveis.
A maioria dos clientes são pessoas mais velhas, que já tinham uma propriedade quando deixaram a Venezuela. Pessoas com filhos, netos. Normalmente, quem vai embora daqui muito jovem é porque está tentando fazer a vida em outro lugar e, portanto, não tem tantas coisas para deixar.
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Quero receberJá aconteceu também de atendermos pessoas que não eram nascidas na Venezuela, mas que migraram para cá quando o país estava com boa economia. Nesse tempo vieram muitos europeus que ficaram anos, amaram esse país, mas por questões como segurança, optaram por retornar. E para eles também ficam as recordações.
Geralmente as pessoas deixam as suas coisas porque não pretendem que a mudança seja definitiva, são poucos os que pensam em sair do país para nunca mais voltar. A maioria das pessoas tem de sair e toma a decisão de ficar nos novos países enquanto reconstroem uma vida por lá. E elas só levam o que cabe em 23 kg de uma mala, que é o tamanho permitido para um voo.
'Há 7 anos não vejo meu filho'
Minha família também migrou. Há sete anos não vejo meu filho de 36 anos que está nos Estados Unidos. Ele ainda não consegue vir para cá e, nesse tempo, nasceu meu neto de 4 anos, que conheço apenas por meio da tela. E essa tem sido a parte mais dolorida.
O meu único filho ter um neto e eu não poder conhecê-lo ainda é o que me dói. Nunca imaginei que fosse passar por isso.
Nunca tive a intenção de ir embora da Venezuela, já sou uma mulher mais velha, tenho minha vida aqui. Tentei conseguir um visto [para os EUA], mas me foi negado. A única coisa que me interessa é poder ir e vir. Mas, até agora, não há o que fazer.
'Toda casa tem vida própria'
Quando entro nas casas, sempre sinto uma sensação de vazio. Toda casa tem uma vida própria que é característica de quem ali habitava. Há algumas casas que estão mais arrumadas que outras e, quando uma casa passa muito tempo trancada, a gente sente um 'cheiro de fechado'.
Sempre acabo fazendo um laço com o cliente. Mantemos contato por telefone, seja por mensagem ou videochamada, para que eu mostre a eles as imagens da casa, os objetos particulares e eles me enviem as orientações: se vamos doar, vender, ou se devo guardar.
E, além disso, também posso ajudar pessoas que estão precisando. Quando meus clientes decidem que vão doar algo, consigo encontrar pessoas que realmente têm a necessidade daqueles objetos.
'Muitos começam a chorar'
Nesse processo me vejo despertando emoções do outro lado. E, assim, sempre tento passar força para cada um deles. Ao verem suas casas, muitos começam a chorar.
Sempre digo que as mudanças também podem ser boas. Às vezes, a mudança não corresponde à expectativa, às ilusões, mas tento dizer para que eles agradeçam ao que viveram na Venezuela, que as circunstâncias vão melhorar e que vão poder voltar para passear por aqui, porque o país continuará aqui.
As pessoas não lidam com as emoções da mesma maneira. Em alguns casos, tenho de interromper o trabalho para conversar sobre coisas da vida porque estamos mexendo com muitos sentimentos.
E por isso digo que é um trabalho lindo porque se trata de pessoas e eu adoro gente. Gosto de conversar, de viver essas trocas. É um intercâmbio.
Para mim, cada casa tem uma história e um significado especial. Sigo com o meu trabalho porque vejo com clareza que quero fazer algo que verdadeiramente faça sentido para alguém."
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