'O ogro vai virar princesa: 'ela' criou um espaço crossdresser em São Paulo
No dicionário estrangeiro, a palavra crossdresser é descrita como "a pessoa que eventualmente cultiva o hábito de usar roupas do sexo oposto, (...) por fetiche". Mas engana-se quem imaginou uma possível semelhança com o termo drag queen. Ambos são completamente diferentes, "a drag é uma artista, uma profissional de palco, de festas", esclarece Lizz Camargo, uma crossdresser assumida.
Por trás da peruca loira e vestido longo, está Jaime Braz Tarallo, 66, há 13 anos, ele idealizou um negócio único em São Paulo, um espaço para os homens darem vazão ao seu lado feminino secreto; isto é, a possibilidade de se tornar uma mulher (dos pés a cabeça), com sigilo e discrição.
O meu trabalho é realizar o sonho da feminização, eles querem se ver femininas, montadas, e bem maquiadas, diante do espelho, conta a veterana crossdresser que deu início ao seu alter ego Lizz aos 25 anos.
O sobrado localizado na Vila Prudente, zona leste de São Paulo, possui uma estrutura completa para transformar qualquer figura masculina em uma dama recatada por algumas horas ou mesmo por uma noite. O local possui araras com diversas peças, bancada de maquiagem, divã, poltronas, tudo decorado com um toque feminino.
Tem alguns clientes que dizem: 'Olha sou muito ogro', respondo, venha, o ogro vai virar princesa.
Ela assegura que durante a transformação, na maquiagem, acontece uma mudança de postura evidente, "eles chegam homens e se transformam em uma mulher, aquela figura vai se alterando, a perna começa a ficar cruzada, o mexer das mãos, o andar muda, e a voz muitas vezes altera, isso é bastante inusitado", revela.
Segredo da liberdade
Segundo Lizz Camargo, 95% dos clientes são casados, a maioria se define como heterossexual, e buscam discrição absoluta. O contato realizado primeiramente por telefone pode se arrastar por meses até ele tomar coragem de pôr o desejo em prática em seu studio crossdresser; mesmo assim, eles chegam receosos, "ele está se abrindo para uma pessoa desconhecida, e abrir essa intimidade causa medo e insegurança, por isso meu trabalho é pautado no sigilo", diz.
Ela explica que a maioria inicia nesse universo usando escondido na infância peças íntimas da mãe ou da irmã.
Uma das clientes é Carla Cross, cujo depoimento foi concedido após exigir que informações pessoais não fossem reveladas na reportagem.
Desde os oito anos tenho essa vontade irrefreável de usar roupas femininas, é uma coisa que a gente não escolhe.
Indagada como se sente quando deixa seu lado masculino de lado, e se transforma no gênero oposto, ela explica com uma voz grave, "é uma sensação ótima, sentir o toque da seda na pele, a maquiagem, o salto alto, é uma coisa que me deixa muito feliz, mesmo que seja por alguns instantes, umas horas, é o que faz tudo valer a pena".
Dona de um vasto acervo de figurinos e acessórios, Lizz possui incontáveis vestidos, uma coleção de sapatos cuja numeração varia entre 38 e 45, e claro perucas, "são 72, entre loiras, ruivas, castanhas, e pretas, de tamanhos diferentes, tenho lingeries diversas, luvas, e bijuterias para enfeitar os looks delas", detalha, cujo visual é inspirado na apresentadora Hebe Camargo.
Atendimento personalizado, companhia e terapia
Muito além de oferecer um espaço, Lizz funciona como uma espécie de personal stylist 'CD' (sigla de crossdresser), visto que muitas não sabem se maquiar ou se vestir, necessitando de uma consultoria personalizada. O atendimento é sempre individual e com hora marcada, para evitar encontros entre um cliente e outro.
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Quero receberApós agendar uma sessão, ele informa as suas medidas (peso, altura e calçado), e com esses dados, ela elabora o visual, sugerindo cerca de quatro trajes para a crossdresser experimentar e escolher um deles.
Sobre clientes acima do peso, ela orienta como eles devem se vestir, "as pessoas plus size vão ficar femininas, mas com uma roupa adequada e não necessariamente com 'roupas de gordas', mas com trajes que sobressaem a beleza", esclarece. O cliente também deve informar se estará depilado, visto que isso facilita o resultado da feminização, "mas se tiver pelos, uso truques para escondê-lo, principalmente se forem pernas e tórax", avisa Lizz.
Em média Lizz atende 25 pessoas por mês, onde "elas" escolhem um dos inúmeros pacotes disponibilizados no site. Cada um engloba uma gama de serviços que geralmente incluem maquiagem, figurino e peruca. Quanto maior a abrangência de serviços, mais elevado será o valor, geralmente a partir de R$ 390 o básico.
Outro diferencial são os pacotes externos, quando a crossdresser se produz no studio e deixa o local com Lizz para dar um passeio, que pode ser ao cinema, restaurante ou mesmo uma casa noturna, neste caso LGBTQIA+ por segurança.
Já levei cliente para o Teatro Municipal para ver a Orquestra Sinfônica, ao teatro, São Paulo tem essa vantagem, somos a cidade da diversidade, conta ela que tem clientes fiéis que vão ao seu espaço até duas vezes por mês e outros mensalmente.
Mas sair de um ambiente seguro para um lugar público é um passo adiante que costuma levar tempo, e que geralmente ocorre após a terceira montagem, "elas [CD] me perguntam: 'você acha que se eu saísse em público alguém vai me achar bonita?' Eu sei que ela não está se referindo a uma mulher, mas se um homem a acharia bonita".
Lizz explica que eles não precisam ser homossexuais, mas sempre existe uma vontade de estar feminina e vivenciar a história de uma mulher na cama com um homem.
Muitas vezes, a experiente crossdresser é quase uma psicóloga para elas, principalmente quando pedem conselhos se deveriam revelar o segredo a esposa.
Sempre digo que não conheço a esposa dele e não sei os contratos emocionais entre eles, mas que tenha cuidado porque ela se casou com o lado masculino dele.
Essa questão não é um problema para a carioca Rebeca Secrets, 46 anos. Casada há seis anos, sua esposa sabe e incentiva seu lado feminino: "sei que é raro isso, ainda mais ela que vem de uma família tradicional, mas ela lida muito bem com isso", conta ela que mora no Rio de Janeiro e costuma ir montada a bares, boates e shoppings com a esposa.
"Procuro fazer parte do mundo real para quebrar barreiras e paradigmas", diz Rebeca.
Quando a magia termina?
O perfil sócio-econômico e a faixa etária pode oscilar bastante — um dos clientes de Lizz tem 96 anos:
Há cinco anos, ele veio conhecer o espaço e me contou que a esposa havia falecido e era ela que montava ele, desde então, ele vem a cada dois meses, sempre que o monto ele fica parecido com a Rainha Elizabeth, revela Lizz, que já atendeu cerca de 5.500 clientes ao longo desses 13 anos.
As sessões duram em média três horas, às vezes até cinco, dependendo do tipo de pacote requisitado, para que a crossdresser tenha tempo suficiente para se desmontar, retirar a maquiagem e tomar um banho.
Uma vez desmontadas e de volta a realidade, Lizz percebe uma mudança nítida de comportamento delas, "muitas choram, ficam amarguradas, porque elas vão deixar esta mulher de lado e vão voltar a vida social delas, ao que era antes, ou seja, a Maria voltará a ser João, e ele terá que lidar com isso".
Para ela, a crossdresser tem ciência que esses momentos de feminização tem um começo, meio e fim.
Enquanto a comunidade LGBTQIA+ tem conquistado cada vez mais espaço em todas as áreas, o universo crossdresser permanece tímido e ainda 'no armário', salvo exceções como Lizz Camargo. "A sociedade em geral tem pouca informação sobre o universo crossdresser, eu nem sei se estamos incluídas nas siglas [LGBTQIA+], mas isso não importa, o que importa é que existimos e apesar de invisíveis, nós somos milhões."
Logo em seguida, ela faz um questionamento:
Imagine uma sala de reunião com dez homens, quantos você diria que debaixo dos ternos, um pelo menos não esteja de calcinha? Você pode me garantir isso? O exercício do crossdresser é algo tão sigiloso que talvez você nunca saberá que pessoas do seu convívio pessoal seja uma CD.
Antes de encerrar a entrevista, ela salienta que às vezes reserva o sobrado inteiro para coquetéis e jantares, o evento costuma reunir até 50 crossdressers.
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