'Coragem parece pavor': na raça, elas foram do Ceará ao Maranhão de bike
Luciana Bugni
Colaboração para Universa
14/07/2024 04h00
"Quantas mil ideias você tem por dia?", pergunta Fernanda Frazão, 39 anos, e me faz reclinar na cadeira. São muitas. "E em quantas delas você se agarra até realizar? Precisa acreditar muito, né?"
A diretora de documentários está falando sobre uma ideia que surgiu há cinco anos, entre tantas outras: viajar de bike com mulheres. Com uma pandemia no meio e vários entraves, ela se agarrou no plano até realizá-lo e você pode ver agora o resultado nos três episódios de "Histórias de Pedal", disponíveis na GloboPlay, que narra a aventura de atravessar o Ceará, o Piauí e o Maranhão de bicicleta.
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Fernanda se identifica com uma pessoa dos esportes há muito tempo. Surfa, corre, pedala e garante sentir prazer e identificação com esportes em grupo também. Andava de bicicleta na infância, em São José do Rio Preto, mas redescobriu o veículo como oportunidade de mobilidade quando entrou na faculdade, em Bauru, no interior de São Paulo.
Já adulta, na capital, passou usar a bicicleta para trajetos curtos de trabalho e de lazer. Em 2014, em uma viagem a trabalho para o México, conheceu um fotógrafo que havia atravessado os EUA pedalando.
Foi ali que descobri que existia isso, cruzar estradas de bicicleta. Aquilo plantou uma sementinha em mim.
Dois anos depois, fez sua primeira viagem de bike. Primeiro, foi até Paraty, nos anos seguintes ao circuito Lagamar (de Ilha Comprida a Cananeia), posteriormente a Campos do Jordão e foi aprendendo mais sobre o equipamento. "Eram dias divertidos, leves, de aventura, sempre com um espírito de descoberta."
Na estrada, encontrava mulheres sozinhas e percebeu que elas faziam as viagens do jeito que dava, improvisando equipamentos. Todas as idades e tipos de corpos podiam pegar a estrada. Em 2018, veio o insight de fazer um documentário sobre essas viajantes. Seria uma maneira de unir paixões: a bicicleta, viajar e cinema. O Canal Off se interessou pela ideia, mas a concretização foi adiada pela chegada da pandemia.
Três anos depois, uma epifania — atravessando o Uruguai de bicicleta com duas amigas e seu companheiro, entendeu que a série que havia pensado anos antes estava acontecendo em sua frente. Para isso, seria preciso levar mulheres que nunca havia feito viagens assim para um roteiro inédito e filmar tudo isso.
Fazer documentário é uma jornada de fato, como na ficção. As histórias precisam ser retratadas, sejam elas brigas, bicicletas quebradas, pessoas machucadas. Na estrada no Uruguai, tudo que eu olhava pensava que podia ser conteúdo.
Daí a concretizar tudo em um projeto audiovisual foram mais anos bem agarrada na ideia. "A gente insiste, volta, recebe nãos e tenta de novo. Só fiz isso porque tinha a ver com minha história e minha paixão. Eu queria inspirar outras pessoas".
Fernanda já tinha interesse no trecho entre Fortaleza (CE) e Atins (MA), a Rota das Emoções, que é mais conhecido pelos fãs do kite surf do que por quem gosta de pedalar. Ali, pensava ela, se o vento empurra as velas, ia ajudá-las também. Estava certa.
"Todo mundo corre, nada ou pedala"
Os cinco anos que separam o embrião do projeto da série pronta acabaram sendo benéficos. A geração por volta dos 40 anos vive um boom de provas de corrida, vontade de pedalar e necessidade de praticar esportes. Se a intenção era inspirar, é difícil ver a série sem pensar em ir atrás do pedal das meninas.
"Esporte cria comunidade e proporciona e movimento social relacionado ao prazer e bem-estar", reflete.
No zeitgeist de "todo mundo corre, nada ou pedala", a diretora foi juntando gente: a produtora Marcela D'Ângelo comprou a ideia, elas começaram a pesquisar personagens e chegaram em Hellen Ramos (a influencer @ahelenramos), que nunca tinha passado tanto tempo longe do filho, e Bruna Mattos (@_brunilds), que nunca havia viajado para fora de São Paulo.
Entre tantas primeiras vezes, a ideia era que elas pudessem se filmar no trajeto, pois há momentos de extrema solidão em que dá vontade de falar com a câmera. O desafio de Fernanda era conseguir dirigir a si mesma e deixar a vulnerabilidade aparecer no vídeo.
"Pedalar, liderar e manter o pensamento de diretora de doc reality foi difícil. Demanda inteligência emocional viver a situação enquanto cria estratégias para todo mundo entregar mais conteúdo, mas não sobrecarregar ninguém, por exemplo. Elas não podiam desistir", diz.
Medo de não dar conta
No apoio, três carros de filmagem seguiam o grupo e um guia experiente, Léo, coordenava as paradas e dava dicas sobre o solo, a maré e o sol. Ali, lidaram com a adversidade climática e desgaste das bicicletas: pneus furados e selins quebrados mudaram a programação várias vezes.
Tive medo de não darmos conta e em inúmeros momentos eu pensei onde estava com a cabeça para agarrar essa ideia assim. Mas eu gosto de desafios, senti medo, mas tinha coragem - outro dia li que a coisa mais esquisita sobre a coragem é que mesmo quando se está fazendo a coisa certa, o sentimento se parece com pavor. Eu sabia que era possível de realizar.
Com isso em mente, coordenou machucados, exaustão, brigas por convivência e focou no resultado: o momento em que o esporte flui e dá para perceber o benefício e o potencial do corpo e acreditar. "Eu me sentia muito mal e incapaz e muito feliz e eufórica ao mesmo tempo", explica Hellen em um dos episódios.
De fato, dá para ver em vários momentos que a dificuldade de pedalar na areia fofa é interrompida pela alegria de estar em frente ao mar. "Se já fui triste, não lembro", diz uma sorridente Bruna para a câmera. Nos vídeos, Fernanda deixa os momentos mau humorados fluírem, as decepções também. Mas a vista do nordeste brasileiro e sua gente a cada cair de tarde fazem o público entender que o rolê realmente vale a pena.
"A sintonia foi bonita: fomos nos descobrindo cada uma no seu universo. A viagem de bike, apesar de nos deixar expostas, com o corpo no mundo e nos deixar vulneráveis, é uma viagem para dentro. A bicicleta convoca a pensar em estado meditativo. Entrar na observação de si, da energia de seu corpo, como ele funciona melhor. Não acontece de imediato, precisa de um tempo para entrar num flow. Mas como é bonito ver cada uma viajando para dentro de si...", diz Fernanda com um sorriso no rosto.
Ver o encantamento alheio é se encantar. Bruna parece fascinada com a natureza colocando suas regras no percurso - ali, ela descobre um mundo novo. Hellen se redescobre, como toda mãe que tem a oportunidade de uma jornada solitária depois de anos em função do filho. Uma sorte. A bicicleta girando, explica Fernanda, gira a cabeça por dentro também e possibilita o momento de refletir sobre hábitos que nem sempre cabem na toada do dia a dia.
Foi lindo assistir a coragem delas e ver que confiaram que eu pudesse contar um pouco essa história de luz e de sombra.
Apesar de já ter feito viagens mais desafiadoras em questões físicas, ela afirma que era mais ingênua antes da Rota das Emoções. "Agora estou muito mais preparada emocionalmente para lidar com aquilo. Foi uma viagem de muito aprendizado para me perceber e perceber o outro", conta.
O feedback emociona: ela tem recebido mensagens das mulheres que viajaram, choraram, e disseram ter acompanhado as três com muita vontade de fazer a mesma coisa.
"O que eu tenho mais desejo é que as mulheres se sintam livres para viajar. Há muitas barreiras e perigos, especialmente da violência sexual. Mas a bike é um instrumento de liberdade e tem um papel importante nisso. Que a gente se junte e se sinta livre para explorar essas paixões, desafiar o corpo, ver paisagem, estar com amigas e praticar esporte ao ar livre. É importante a liberdade de ocupar espaço em segurança", diz.
Na série, elas conversam com uma mulher cearense que encontram pelo trajeto. Ela afirma que sobreviver já é uma vitória: "Não é esperar que o vento traga, tem suor derramado". Bruna, em algum momento, afirma para a câmera que percebeu que daria conta e se empoderou. Quem está vendo acredita também.
Quando tudo que você precisa é chegar em um lugar para dormir, pensa: o que eu preciso mesmo para viver?, filosofa Hellen Ramos.
Fernanda garante que a bicicleta convoca para o presente. "A mente é muito sofisticada: tem hora em que você precisa cansar o corpo ao máximo para esvaziá-la", ela diz. Quantas mil ideias você teve hoje? E em qual vai se agarrar até realizar? A gente segue as bicicletas das meninas mais confiante de que é capaz.