'Nasci de um estupro, tenho o rosto do agressor e sou contra PL do aborto'
Eu sou um feto que se originou de um estupro, que tinha 22 semanas quando foi descoberto.
Foi assim que Mili Anjos, de 40 anos, começou a falar em suas redes sociais sobre o projeto de lei que limita a possibilidade de aborto até mesmo em casos em que o direito já é reconhecido.
Por muito tempo, ela, que é influenciadora, se perguntou se poderia falar sobre essa pauta nas redes sociais, mas, para Mili, as mulheres precisam ter o direito de decidir sobre o que querem fazer com uma gravidez proveniente de um estupro.
'Tenho o rosto do agressor'
Desde nova, ela se perguntou por que sua mãe não a amava. Se viu uma criança sozinha, mal vista no município de Limeira (SP), onde nasceu, e nunca entendeu algumas coisas que aconteciam em sua família.
"Minha mãe nunca me contou sobre meu pai, eu tinha aquela curiosidade. Para a nossa família, devia ser algum namoradinho que a engravidou, destruiu a sua vida e sumiu."
Quando Mili nasceu, a mãe mal olhava no rosto da filha. E, durante a infância e a adolescência, a menina invejou a vida de amigos e vizinhos. "Sempre busquei uma família com amor, afeto, carinho, nunca tive pai e sentia que a minha mãe não me amava."
Aos 15 anos, pediu um presente de aniversário: que a mãe dissesse pelo menos o nome do pai dela. "Ela floreou uma história para me contar, de que tinham sido namorados."
Foi assim que, em buscas, encontrou familiares e chegou até o pai. Eles se conheceram pessoalmente na rodoviária de São Paulo, mas o encontro não foi o que esperava. Anos depois, a mãe conseguiu contar o que tinha realmente acontecido entre os dois: um estupro.
É muito doloroso saber que eu tenho o mesmo rosto que o agressor da minha mãe.
"Minha mãe se viu sozinha, com pouca orientação do que era o mundo. Por mais que ela tentasse esconder o máximo possível essa história, as pessoas sentiam o cheiro do que tinha acontecido, sabiam de onde eu tinha vindo."
'Tinha de olhar para mim todos os dias'
Mili decidiu expor o que havia acontecido na sua vida na internet após 23 anos de terapia, com o consentimento da mãe. Hoje, ela tem 40 anos e a mãe, 60. Quando o estupro aconteceu, a mãe tinha 20 anos e só descobriu a gestação no sexto mês.
Foi preciso muito tempo para que as duas se perdoassem, entendessem o trauma e aprendessem a lidar com as marcas que o estupro deixou na estrutura da família. Hoje, a mãe se orgulha da maneira como Mili trata o tema nas redes sociais.
"Entendo que a minha mãe demorou para me contar, porque sentia vergonha. Quando ela finalmente me contou tudo, se sentiu muito aliviada. E eu entendi toda a nossa história e por que nunca existiu amor."
O amor é algo muito tênue. Existem várias formas de amor, mas eu não fui alguém que nasceu do amor. Nasci de uma violência que se perpetuou por uma vida inteira da minha mãe e agora estamos nos curando. Nunca tive carinho, amor ou atenção dentro de casa -- agora temos orgulho uma da outra. Nós duas temos traumas.
Mili Anjos
"Eu não acho que foi o melhor para minha mãe", diz ela, que defende a escolha da mulher sobre o aborto em casos de estupro.
"Eu estava ali, um bebê que ela tinha de manter vivo, cuidar, alimentar alguém que nasceu do pior momento da vida dela. E o pior: eu sou muito parecida com ele. Somos iguais e ela tinha de olhar para o meu rosto, o rosto dele, todos os dias."
A influenciadora se pergunta se a mãe teria tido uma vida melhor se ela não tivesse nascido.
"Por isso eu abomino o avanço dessa pauta [PL do aborto] e a maneira como o aborto legal estava sendo debatido, levando em consideração apenas a perspectiva de homens. Eu nunca tive um pai, não existe pai estuprador."
Essa PL diz o seguinte: que a partir da 22ª semana de gestação as mulheres e os profissionais que estiverem envolvidos no aborto serão punidos por isso. Eu sou um feto que foi descoberto quando a vítima de um estupro estava na 22ª semana. E, quando a minha mãe descobriu, se viu completamente sozinha.
Mili Anjos
O fato de o PL ter sido pensado por homens incomoda mãe e filha. "Os homens sempre querem ter um lugar de fala", diz. "Mas que pena deve ser dada a uma pessoa que está desesperada, querendo apagar um trauma e mal tem dimensão de tudo o que está acontecendo na vida dela?"
É um absurdo essa discussão. Se eu pudesse escolher, por todo o amor que eu tenho pela minha mãe, por tudo que eu vi ela passar? Eu sou contra [o PL do aborto].
Mili Anjos
Proposta
O PL 1904 ficou conhecido como PL antiaborto porque proíbe médicos de realizarem interrupção de gravidez, mesmo em casos de estupro para fetos que têm "viabilidade fetal presumida", ou seja, que já ultrapassaram as 22 semanas de gestação. Após a repercussão, a votação foi adiada na Câmara dos Deputados e volta a ocupar a pauta no mês de agosto.