'Não fabricamos faxineiras, e sim, meninas que estudam', diz Cris Vianna

Quando perguntada sobre o que tinha na cabeceira no momento, Cris Vianna, 47, mostrou o livro "Tudo sobre o amor: Novas Perspectivas", de Bell Hooks (Elefante). Depois do papo com Universa, percebe-se que a escolha faz muito sentido: com mais de 20 anos de carreira ela tem mesmo uma perspectiva única sobre a vida.

Hoje ela dá vida a Lulu na novela "Família é Tudo", seu primeiro papel mais cômico — que prefere chamar de "divertido". Mas atuando há mais de duas décadas, já interpretou diversas personagens. "Não enxergo que fiz tanta coisa, acredito que posso fazer o dobro — e tenho essa vontade", disse.

Cris faz críticas sociais de maneira assertiva e delicada, principalmente sobre o papel das mulheres pretas na dramaturgia. Leia mais na entrevista:

Universa: Em "Família é Tudo" você está fazendo seu primeiro papel cômico. Fez alguma preparação especial ou sempre teve um lado engraçado escondido em você?

Cris Vianna: Meus amigos, que me conhecem, e alguns professores que me deram aula de teatro, diziam que sonhavam que eu fizesse uma personagem divertida. Eu entendo a Lulu assim: divertida, não cômica. Tenho esse lado mais descontraído e com ela posso me apresentar assim. É a primeira vez que recebo um papel em que posso brincar com esse meu lado.

Lulu (Cris Vianna) em 'Família É Tudo'
Lulu (Cris Vianna) em 'Família É Tudo' Imagem: Reprodução/Globo

Você sentiu uma pressãozinha de ter que ser mais divertida na TV? Deu medo?

Não fico focada em 'tenho que ser engraçada', porque aí acabo não sendo. E a Lulu não é a mais engraçada da novela, né? Tenho que entender o lugar que a personagem está e ela dá uma virada na história: não segue os padrões e tem algumas coisas em que só ela acredita, vive em seu próprio universo, focado no talento da filha que não existe.

Tento não me preocupar se as pessoas vão achá-la leve, mas desejo sempre que dê tudo certo, como em todos os trabalhos. Quero ser clara com o público.

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Você tem mais de 20 anos de carreira e sinto que já fez tanta coisa? Ainda tem algum desejo para realizar dentro da dramaturgia?

Não enxergo que fiz tanta coisa, acredito que posso fazer o dobro — e tenho essa vontade. Tenho zero preguiça para trabalhar e posso fazer muito mais. Acredito que existam muitas oportunidades dentro do universo feminino — do universo feminino preto então, ainda mais. Acredito que existe um leque muito grande de tramas sobre mulheres em que eu posso estar inserida.

Lulu (Cris Vianna) em 'Família É Tudo'
Lulu (Cris Vianna) em 'Família É Tudo' Imagem: Reprodução/Globo

Tem algum papel que você não aceitaria fazer?

Tem personagens que não combinam comigo, mas nunca parei para pensar sobre isso, porque sempre gasto minha energia naquilo que quero fazer. Já neguei papeis.

Existiu um momento da minha vida que me convidaram para fazer uma mulher sofrida, com uma tristeza familiar muito forte. Mas estava em uma época muito feliz e não me enxergava naquele em meio a uma intensa tristeza. Neguei por achar que não conseguiria entregar o personagem.

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Claro que felicidade não impede que você faça um drama.

A atuação é sobre isso. Só que naquele momento eu estava em outra sintonia. Faz parte.

Há alguns poucos anos, mulheres pretas só faziam papeis menores e periféricos, como babá, faxineira, cozinheira. Nunca protagonistas. Melhoramos, mas você acha que ainda há muito mais para evoluir?

O racismo não evoluiu e nem se curou. Essa doença tem que ser vista com muita responsabilidade. Sempre disse que ela não partiu das pessoas pretas, e nem foi criada por elas. Obviamente teve um avanço e fico feliz.

Temos jovens pretos que estão trabalhando muito mais. E isso tem muito a ver com o todo o trabalho ancestral e uma caminhada de quem veio antes de nós. Temos que ser gratos e reconhecer essa jornada. E embora não exista uma leitura clara, somos mais de 50% da população do país. Isso significa que somos consumidores, que reforçamos o capitalismo e milhões de outras coisas.

Hoje em dia, é necessário fabricar mais máquinas de lavar. Porque as nossas crianças vão mais para a escola, não para a faxina.

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Não estamos fabricando faxineiras, e sim, meninas que estudam. Elas vão entender como esse mundo funciona.

Você é uma atriz de 47 anos. Sente que existe um etarismo e que só recebe proposta para papeis de mulheres mais velhas, por exemplo?

Sou uma mulher preta. Desde que comecei a ser atriz já era mãe na dramaturgia. A segunda personagem que fiz, uma escrava, tinha uma filha. Sempre contei essas histórias e esse lugar sempre foi colocado para mulheres pretas.

Essa questão [da idade] que acontece com muitas amigas agora nem passa pela minha cabeça, porque sempre me foi apresentado: a mãe preta jovem, a mãe preta trabalhadora, a que cuida de todo mundo? Tive isso dentro da dramaturgia, mas que também está enraizado na história da minha ancestralidade.

Como isso acontece comigo desde que me entendo como atriz, não é um problema para mim. É muito delicado o que estou dizendo e tenho noção disso. Mas também é real.

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