Sexo pode começar consentido e virar estupro; dono de bar foi condenado
De Universa
23/07/2024 04h00Atualizada em 23/07/2024 10h26
A condenação de Gabriel Ferreira Mesquita, dono de um bar em Brasília, pelo estupro de uma das 12 mulheres que o acusam de violência sexual, levou em consideração os atos sexuais praticados pelo empresário sem o consentimento da vítima.
Segundo o Ministério Público do Distrito Federal, "o acusado praticou as condutas enquanto a vítima estava sob o efeito de alguma substância alucinógena que reduziu a sua capacidade de resistência".
Em sua decisão, o juiz Aimar Neres de Matos afirmou: "O réu, desejoso de manter sexo anal com a vítima, sem uso de preservativo, sabia muito bem que, caso esta se encontrasse plenamente consciente, muito provavelmente não aceitaria (...). Por isso, o réu usou o estratagema de oferecer bebida à vítima e, ao perceber que ela já estava tomada pelos efeitos do álcool, de forma repentina e, por que não dizer violenta, deu vazão ao seu desejo sexual".
Ato não consentido é estupro?
A lei brasileira define estupro como conjunção carnal ou ato libidinoso mediante violência ou grave ameaça, mas, na prática, depende da interpretação do juiz sobre o que é violência. Para Luiza Nagib Eluf, advogada criminal e procuradora de Justiça aposentada, "qualquer prática sexual não consentida é estupro". Ela é autora de livros considerados referência na área de gênero e lançou, em 1999, uma obra de 2.054 páginas exclusivamente sobre crimes sexuais.
A advogada criminalista especializada em direitos das mulheres Maira Pinheiro explica que, desde 2018, com a lei 13.718, que tipifica o crime de importunação sexual, "qualquer conduta de caráter sexual praticada sem a anuência da vítima passou a ser criminalizada". "Então, mesmo que você não tenha contenção física ou ameaça, se não houver anuência, também será crime", diz Pinheiro.
Há diferentes tipos de impossibilidade de consentir. "Há a impossibilidade de consentir transitória, que acontece quando a pessoa está, por exemplo, dormindo ou sob efeito de alguma substância que altera a sua consciência. E a impossibilidade permanente, como a pouca idade ou alguma condição de deficiência que impeça a pessoa de exercer sua autonomia e capacidade de consentir", explica a advogada.
A gente pode mudar de ideia a qualquer momento, e tudo o que acontece sem consentimento é crime, podendo ser crime de importunação sexual, de estupro, ou de estupro de vulnerável, a depender das condições em que esse consentimento é exercido. Maira Pinheiro
Consentimento para atos da vida sexual deve ser inequívoco, dizem as delegadas Patrícia Burin e Fernanda Moretzsohn, especializadas em violência de gênero, em artigo citado na sentença que condenou Mesquita. "Ao contrário do que tradicionalmente se afirmava, no sentido de que a resistência da vítima teria de ser inequívoca, inequívoco deve ser o consenso para os atos da vida sexual".
Há crime ainda que não haja oposição veemente do ato sexual. Isso parece até intuitivo, pois uma pessoa alcoolizada não tem condições de exercer resistência enérgica, forte, a uma abordagem de natureza sexual. (...) Não se há de cogitar consentimento presumido ou preestabelecido para os atos da vida sexual, ainda que haja um relacionamento prévio. Nem mesmo o casamento retira da pessoa o direito de livremente dispor acerca da sua sexualidade.
Patrícia Burin e Fernanda Moretzsohn, no artigo "A embriaguez como causa de vulnerabilidade da vítima de estupro"
Somente o 'sim' é 'sim'
A advogada Maira Pinheiro concorda com a tese das delegadas: "O consentimento só se faz presente quando ele puder ser identificado e a sua presença verificada continuamente ao longo da interação." Isso significa que, "se o consentimento não for explícito o suficiente, o outro lado, que em geral é um homem, não pode simplesmente supor, presumir que na ausência de um 'não', um 'sim' está colocado."
Somente o 'sim' significa 'sim'. E esse 'sim' pode ser revogado a qualquer tempo. Não existe uma situação em que um homem obtém acesso ao corpo de uma mulher de maneira definitiva. Ela pode retirar o consentimento sempre que ela quiser.
Maira Pinheiro
As advogadas ouvidas pela reportagem consideram que casos nos quais uma relação sexual é iniciada de forma consentida e, depois, caminha para a violência são frequentes no Brasil. "E, inclusive, são casos em que normalmente a vítima leva um tempo até se entender como tal. É um processo, na maioria das vezes, bastante doloroso subjetivamente, que passa por anos de silêncio, por adoecimento psíquico e muita coisa até a mulher chegar ao ponto de conseguir não se culpar pela violência que sofreu", avalia Pinheiro.
Medidas a serem tomadas pelas vítimas
Em casos de estupro e outras violências sexuais, a vítima deve se dirigir à Delegacia da Mulher e pedir a instalação de um inquérito policial, além de realizar um exame de corpo de delito para "verificar a existência de lesões corporais e vestígios de esperma", explica Eluf.
A pessoa violada deve, sempre que possível, reportar a ocorrência de crime sexual o quanto antes e com ajuda de uma orientação profissional, ressalta Maira Pinheiro. "Porque, infelizmente, no nosso sistema de Justiça, o tratamento que as vítimas recebem tende a ser pior quanto mais tempo passa."
Se você foi vítima de um crime sexual, mas não tem nenhuma marca no corpo e já passou alguns dias, então o exame toxicológico não vai pegar nenhuma substância em você. Ainda assim, você pode tranquilamente reportar um crime sexual.
Maira Pinheiro
Ainda segundo Pinheiro, "não só as evidências materiais podem corroborar com o relato de uma vítima". Também as pessoas a quem foi relatado o crime sexual podem ser consideradas testemunhas, bem como registros de conversas, mensagens e outros elementos que estejam no aparelho celular, GPS ou aplicativos de transporte, por exemplo, podem servir de evidência.
Casos de violência sexual, como o que resultou na condenação de Mesquita, estão se tornando mais frequentes no Judiciário —"não porque ocorrem mais hoje, mas porque estamos tendo um avanço de consciência, principalmente das mulheres". Isso, avalia Pinheiro, "permite que elas identifiquem com mais clareza o que é violência, o que é crime, e busquem Justiça".
Existe um ranço patriarcal que contamina todas as etapas do sistema de Justiça, desde aqueles que lidam com as vítimas nos primeiros momentos, como nas delegacias de polícia e nos círculos sociais. Por isso a gente tem tantos casos relativizados e tantas absolvições absurdas. Apesar disso, vejo esse cenário com algum otimismo, vejo uma melhora conforme o tempo passa.
Maira Pinheiro
O que diz a defesa
Em nota, o advogado de Mesquita, Bernardo Fenelon, afirmou à reportagem: "A Justiça está sendo feita. Em verdade, Gabriel Ferreira foi absolvido de mais duas injustas acusações. É válido lembrar que 12 denúncias foram feitas e, corretamente, a Justiça do Distrito Federal já o absolveu de 11 delas".
E concluiu: "Por esse motivo, encaramos com serenidade esta única condenação. Entendemos que houve um grande erro e iremos recorrer ao Tribunal de Justiça para restabelecer a total inocência de nosso cliente".