'Vencer fora das quadras é mais difícil': a reinvenção de Rosamaria

Rosamaria Montibeller conta como se reinventou no vôlei após quadro de depressão. A ponteira vai defender a seleção feminina de vôlei nas Olimpíadas de Paris-2024, que estreia no dia 29 de julho contra o Quênia.

Era temporada de 2018 quando ia para o treino muda e saía calada. E chorava. E tive queda de cabelo.

Chorava por tudo, queda de cabelo intensa, coração acelerado. Lembro que cheguei um dia do treino, estacionei o meu carro e eu não consegui sair. Comecei a chorar, chorar e chorar. Estava com o corpo mole, não queria fazer nada, não tinha forças para sair do carro.

Eu sabia que aquela não era a Rosamaria que ia para o treino e brincava, fazia piada com as meninas. E me sentia mal porque eu achava que eu estava sendo um peso para o time, e acabava jogando mal porque isso me gerava uma insegurança.

Nesse dia que eu não consegui sair do carro, conversei com um amigo, que me deu o contato de uma psiquiatra. Quando fui conversar com ela, ouvi: "isso é totalmente um quadro pré-depressivo".

Foi aí que comecei a me tratar e entender o que estava acontecendo. E veio a decisão de me afastar da Seleção em 2019.

Perdendo ou ganhando? Tanto faz

Muita gente vê o esporte como uma cura, e ele de fato pode ser quando é sua válvula de escape, mas no meu caso, é a minha profissão. Muitas vezes a gente entra num quadro depressivo por trabalho e percebi que esse estava sendo o meu problema.

Eu estava no Minas Tênis Clube em 2017. Naquela época, aos 22 anos, tinha acabado de entrar nesse cenário do vôlei profissional, de estar numa seleção brasileira. Mas eu estava perdendo o prazer naquilo.

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Parei de ter sensações e entendi que tinha alguma coisa errada quando me sentia vazia por dentro. Ia para o treino e não conseguia nem ficar chateada com as coisas.

Eu não tinha reação, não estava nem feliz, nem triste. Se a gente estava perdendo ou ganhando, não conseguia sentir emoções.

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Imagem: Glauber Bassi/UOL

No começo, não conseguia verbalizar e tinha alguns sintomas, como um cansaço muito extremo. Ia para o treino e só chorava. À noite, tinha muito pesadelo e não tinha muita força para conversar com as pessoas, mas nunca liguei os pontos.

Para mim, era o cansaço do treino. Então eu não sabia nem o que falar, mas via que as pessoas enxergavam aquilo. Muitas colegas de time vieram conversar comigo, mas também não sabiam muito o que dizer.

Um dia comecei a chorar no meio do treino de uma maneira muito intensa, saí do ginásio e o meu técnico [Stefano Lavarinio] veio falar comigo. Isso também tirou um peso muito grande das minhas costas. Ele perguntou o que estava acontecendo, porque disse que já tinha percebido que eu não estava bem, e então desabei.

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Foi um grande alívio, porque eu consegui explicar para ele por que eu não estava conseguindo treinar.

Achei importante compartilhar porque é um esporte de equipe e você tem que entender o que está acontecendo ao seu redor.

Quem era eu?

Nossa temporada é contínua. Eu terminava a de abril no clube, tinha uma semana, às vezes duas, e já me apresentava na seleção. E terminava a seleção, quatro cinco dias eu já ia para o clube. Estava vivendo aquilo desde os meus 16 anos.

Então eu entendi que eu estava muito saturada.

Nunca tive um tempo para mim, para descobrir o que eu gostava além do vôlei. Eu estava me vendo só como uma jogadora, e a partir do momento que o vôlei estava andando mal, eu estava me sentindo meio inútil.

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Se eu não sabia jogar bem vôlei, o que eu sabia fazer? Tipo? Quem era eu?

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Imagem: Glauber Bassi/UOL

Após a temporada de 2018, entendi, depois de muita terapia, que tudo que eu precisava era de um tempo para mim, para relaxar, me divertir, ficar com a minha família. Eu não conseguia pensar em continuar aquela batida de treinos e jogos e pressão, que eu mesma colocava em mim.

Foi quando conversei com o Zé [Roberto, técnico da seleção], expliquei a ele o que estava acontecendo e da minha decisão [de não jogar a pré-olimpíada].

Eu queria continuar jogando, então eu sabia que seria uma decisão importante a longo prazo. O Zé Roberto entendeu a situação, até porque em 2018 ele viu que eu não estava sendo a mesma Rosamaria que ele conhecia.

Eu queria voltar para a Seleção da melhor maneira possível, me sentindo eu mesma, porque, obviamente, quando você chega em alto nível e com a camisa da seleção, é uma cobrança diferente.

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Eu sabia que era um ano muito crítico por ser pré-olímpico, o que me fez ficar sem dormir por três meses. Eu pensava: 'Estou jogando fora a oportunidade de ir para uma Olimpíada.' Se você não participa do ano pré-olímpico, perde espaço, afinal, a Olimpíada é no ano seguinte e é uma questão de mostrar quem está no melhor momento.

Só que aquilo era tão grande para mim, tão importante que eu percebi: "não posso continuar desse jeito, isso não tem nada a ver com a Rosamaria atleta, isso tem a ver com a Rosamaria pessoa, e eu não estou conseguindo viver, ser feliz, ter tranquilidade para fazer minhas coisas.

Campeões não são invencíveis

É muito difícil a gente entender o que está acontecendo. Lembro de ter sido muito importante ouvir outras atletas que passaram por isso, campeãs olímpicas, e caiu a minha ficha.

Falei: 'então acho que eu posso passar por isso. Eles não estão lá porque são invencíveis. Eles são iguais a mim, com medos, incertezas e dúvidas'.

Foi muito difícil falar para minha família sobre isso. Tive a sensação de que eu ia decepcionar meus pais, que iam falar "Como assim você não vai para a Seleção Brasileira?"

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A gente saiu para jantar e conversei com a minha irmã antes, falei o que ia acontecer. Achei que eles não iam entender, mas quando eu falei o que estava acontecendo eles mais do que me apoiaram, falaram que eu estava tomando a decisão correta e que era o melhor para mim e para minha carreira.

Na temporada 2019/2020 de clubes, e escolhi ir para a Itália. Isso foi um renascimento, porque já era uma vontade antiga jogar fora do país.

E aí eu entendi que aquele era o momento, porque eu queria me sentir renovada, testar uma coisa nova, me desafiar. Estava sentindo falta daquilo. Voltei também a jogar na posição em que eu me sinto mais confortável e foi incrível.

Renascida na Itália

Sabia que seria muito difícil, um risco, afinal, estava entrando em um outro campeonato, e muitas vezes, leva um tempo para se adaptar com a cultura, alimentação, outro ritmo de treino.

Fui com todo mundo contra, pensando nesses riscos, mas era o meu sonho e achei que era importante para essa minha renovação.

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E eu cheguei lá tão feliz e disposta a fazer o que tinha de fazer para ter de novo uma oportunidade na seleção e para me reencontrar no voleibol que foi uma das temporadas mais gostosas.

Lembro de ter tido as melhores sensações porque eu tinha prazer de estar me matando no treino, na parte física, no dia a dia, descobrindo novos desafios. Era algo que eu não sentia havia muito tempo.

Com ajuda da terapia, tive o entendimento do que era o meu sonho. Queria botar a cabeça no travesseiro e dormir sabendo que eu estava fazendo o que eu queria fazer.

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Imagem: Glauber Bassi/UOL

Jogar na Itália foi uma das melhores decisões da minha vida e aquele ano foi espetacular. Eu terminei como segunda maior pontuadora do campeonato. Infelizmente a temporada acabou na metade por causa da covid, mas foi um divisor de águas na minha carreira.

Consciente das minhas escolhas

Em 2021 me apresentei na seleção renovada. Era tudo novo e empolgante. Eu estava disposta a fazer tudo, e estava muito feliz. Foi um booster de energia ter saído do país e me desafiado.

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Mais importante do que a mudança de ares foi, na verdade, viver algo que eu desejava, mesmo que outros considerassem um risco ou duvidassem.

Eu tinha certeza no meu coração de que aquele era o momento certo de sair. Voltei bem física, técnica e mentalmente. E consegui viver o meu sonho, que era jogar uma Olimpíada.

Eu sabia que não seria fácil, que as decisões que eu tinha tomado poderiam tornar o meu caminho até Tóquio mais difícil, mas eu estava muito consciente das minhas escolhas, e muito segura de que tinha feito aquilo por mim e pela longevidade da minha carreira.

Muito blindada

É muito importante a gente falar abertamente sobre saúde mental no esporte e não ver como uma fraqueza. Quando olho para trás, vejo que na minha decisão de admitir para mim mesma que eu precisava de ajuda teve muita força.

Não é fácil lidar com a paixão do outro. As pessoas ficam cegas muitas vezes nas críticas, nos comentários. Quando você ganha, você é a melhor do mundo, mas no outro dia você perde e já é a pior, então como lidar com isso?

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Imagem: Glauber Bassi/UOL

É claro que continuo fazendo terapia e hoje sou mais blindada com todas essas questões de opinião que envolvem o esporte.

Acho que a partir do momento que eu me conheci e aprendi a ter certeza do trabalho que eu faço, do quanto eu me dedico, não lido mais com as expectativas dos outros. Hoje tiro um tempo para estar com a família, ficar perto da natureza, fazer qualquer coisa manual que relaxa e esvazia um pouco a mente.

Quando descobri quem é a Rosamaria fora das quadras, me senti competente em outras coisas.

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