Ativista trans: 'Eles combinam de nos matar. A gente combina de não morrer'
Andre Aram
Colaboração para Universa
29/07/2024 04h00Atualizada em 29/07/2024 14h50
A ativista Jovanna Cardoso, 61, se descreve como uma travesti preta e nordestina e conta que a violência a acompanhou durante muito tempo:
Enquanto eles combinam de nos matar, a gente combina de não morrer. Tenho 61 anos, mas muitas coisas deixei de fazer: não ia a festas, a concentrações públicas, raras aparições no carnaval.
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Natural de Mucuri, no extremo sul da Bahia, o preconceito veio primeiro daqueles que deveriam protegê-la: "Eu não me descobri, eu já nasci trans".
Filha de um pastor com uma mãe católica fervorosa, ela relembra que na infância detestava as roupas de menino, e extravasava isso usando escondido os vestidos de sua mãe, "mas ela flagrou algumas vezes e me batia, meus pais me batiam muito", recorda-se. A ausência de apoio familiar, fez com ela fugisse de casa aos 12 anos em direção a Vitória-ES, para viver sua identidade de gênero. Um ano depois, ela já estava no mercado do sexo:
Fui profissional do sexo, as prostitutas me acolheram, me senti acolhida por essa população que a sociedade insiste em deixar a margem. A criança não se prostituí, ela é explorada sexualmente como eu fui, mas era a única forma de sobrevivência, morei na rua, fui presa diversas vezes, apanhei (...) fui muito explorada, conta ela.
Vítima de transfobia inúmeras vezes, uma delas foi o ápice para ela iniciar a sua militância que perdura até hoje, sendo uma pioneira do movimento trans no país.
Em 1979, ela estava na fila do cinema quando foi presa por "crime de vadiagem", isto é, simplesmente por ser uma travesti. "Fui autuada no artigo 59 de Vadiagem em Vitória, foi praticamente um presente de aniversário para os meus 18 anos".
Jovanna avalia que a transfobia possui uma ligação com o machismo e à hipocrisia:
A hipocrisia é a responsável pela transfobia. Eles preferem praticar a violência e nos tirar de circulação, nos tirar a vida, com medo que os seus desejos sejam revelados, esses dados não são oficiais, mas nós que já fomos da noite, eu que fui prostituta por imposição, não por vocação, mas sei que 100% dos homens que procuram esses serviços são para fazer sexo passivo, e isso faz eles ficarem com medo, e deixar a hipocrisia imperar.
Iniciativa e luta
Jovanna conhecida também pelo sobrenome Baby, não estava disposta aceitar mais uma violação contra a sua dignidade, e decidiu criar com algumas amigas o projeto Damas da Noite; primeira associação do país que articulava os direitos de prostitutas e travestis do Espírito Santo. O objetivo era dar um basta a violência policial, muito comum na época.
"Nós éramos presas diariamente, a polícia nos espancava, então decidimos nos organizar juntamente com as prostitutas".
A iniciativa deu certo, e a associação passou a dialogar com os poderes públicos e isso amenizou a violência policial. Seu ativismo e liderança foi se expandindo no decorrer dos anos, e em 1992, ela fundou no Rio de Janeiro, a Associação de Travestis e Liberados (ASTRAL); mais de uma década depois, a motivação ainda era a mesma:
Violência policial, prisão arbitrária, muitos assassinatos de travestis no Rio, até o prefeito da época mandava a guarda municipal nos prender, não aguentávamos mais aquilo, relembra ela.
A primeira ONG exclusivamente trans no país, não era apenas pioneira aqui: "A ASTRAL foi a primeira do mundo, porque no exterior todas as ONGs eram gays, então eles colocavam as transexuais e travestis nesse guarda-chuva da letra G (gay)".
Além disso, segundo Jovanna, isso também permitiu uma emancipação politica aqui, visto que antes elas eram tuteladas pelo movimento homossexual que proclamava em nome delas. Dessa forma, elas passaram a ter voz própria.
A partir de 1993, vieram os encontros nacionais de travestis e em 1995, ela e algumas amigas trans, instituíram a Rede Nacional de Travestis (RENATA), logo a sigla mudou para RENTRAL; e em 1997 foi alterada para Articulação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA). Em 2014, Jovanna Baby criou o Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros (FONATRANS), organização em defesa da população trans aliado a discussão da questão racial, com o Poder Público.
Solução para a transfobia no Brasil
Embora tenha sido a fundadora de associações precursoras dedicadas à população trans, ela afirma que os progressos foram poucos.
Segundo dados da ANTRA, em 2022, houve 151 mortes de pessoas transgêneros no país, pelo 14° ano consecutivo.
Ainda somos o país que mais mata corpos trans, continua sendo o país onde a única forma de trabalho é a prostituição; nosso maior desafio é sobreviver, é fugir da morte. As meninas da prostituição não têm a oportunidade de estudar, porque tem que escolher ou estuda e passa fome ou se prostitui e se alimenta; então elas precisam fazer essa escolha no mundo de hoje., desabafa a ativista.
No que se refere as ações que deveriam existir para reduzir situações de transfobia no país, Jovanna é direta: educação sexual nas escolas e tratar as diferenças humanas.
Mais ideias
Universa perguntou a três ativistas de ONGs LGBTQIA+ quais iniciativas poderiam solucionar ou mesmo atenuar a transfobia no país.
Para Guilherme Nascimento, militante do Grupo Sete Cores em Niterói, Rio de Janeiro, a resposta está na inclusão e informação:
Devemos dialogar mais esse tema, levar essas questões as escolas para diminuirmos o bullying e implementar mais políticas de inclusão, incluindo mais essas pessoas no mercado de trabalho formal.
Lorena Magalhães, assessora executiva do Grupo Conexão G, no Complexo de Favelas Maré, no Rio de Janeiro, que visa minimizar os preconceitos de pessoas LGBTI+ nas favelas cariocas, menciona a informação como fundamental.
De acordo com Observatório de Violências LGBTI+ elaborado pela Conexão G, cujo intuito é mapear as violações de direitos nos territórios de favelas, constatou-se que cerca de 24,69% de 'travestigêneres' já sofreram ou sentiram-se ameaçadas por agentes públicos, como a Polícia Militar. "Torna-se importante considerar como esses agentes são treinados, e capacitar os equipamentos do governo" afirma Magalhães.
É crucial começar pelo campo da educação para desconstruir estereótipos atribuídos a esses corpos ao longo do tempo.
Presidente da ONG Casinha, cuja função é auxiliar a população LGBTQIAPN+ em situação de vulnerabilidade social no Rio, Douglas de Lacerda é mais abrangente quanto às ações a serem criadas.
Primeiro ser aprovado um projeto de lei que criminalize a homotransfobia e crie ações sociais efetivas para mudança de pensamento, além de ações educativas em escolas, empresas, e criação de cotas trans.