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Débora Diniz: 'Ser contra ou a favor do aborto é pergunta muito masculina'

A antropóloga Debora Diniz Imagem: Acervo pessoal

De Universa, em São Paulo

30/07/2024 04h00Atualizada em 30/07/2024 18h18

A antropóloga Débora Diniz é alvo de um "redemoinho de ódio", como ela mesmo define. Em 2018, ela esteve entre as dezenas de mulheres que se reuniram no Supremo Tribunal Federal (STF) para debater a descriminalização do aborto no Festival pela Vida das Mulheres. Após ameaças de morte por sua defesa pública, ela teve que deixar o Brasil.

Ainda que esteja em exílio, a antropóloga continua a provocar o debate no Brasil e no mundo. Neste ano, ela dirigiu o filme "Uma Mulher Comum", que conta a história de Scarleth Dantas, 29, uma mulher negra e mãe de três filhos que viaja mais de 2 mil quilômetros para ter acesso a um aborto legal e seguro.

O documentário acompanha a trajetória de Dantas, que estava na fila para o planejamento familiar pelo SUS. Sem sucesso, ela tenta por meio da rede privada, mas, no meio tempo, acaba engravidando. A saída é realizar um aborto em Buenos Aires, onde a interrupção voluntária da gravidez é legal desde dezembro de 2020. A obra já foi premiada em festivais internacionais de cinema.

A mulher comum é sobre essa mulher comum, atravessando as fronteiras do privado, do doméstico, do país, e da vida, para ter um aborto.
Débora Diniz a Universa

Em entrevista a Universa, de Berlim, onde vive atualmente, Diniz refletiu sobre os movimentos de ataque contra as mulheres no país e como a luta pela descriminalização do aborto atravessa a sua própria vivência. Confira:

Você é graduada em ciências sociais e depois fez mestrado e doutorado em antropologia. Nesse campo acadêmico, quando começa o seu interesse no tema do aborto?

Já desde muito cedo, como antropóloga, fui me aproximando de histórias de mulheres. Era algo que estava, digamos, mais no mundo exterior do que no mundo acadêmico. Estamos falando do final dos anos 1990.

Há também uma história exterior sobre o que o país vivia naquele momento, no início dos anos 2000, com mulheres batendo na porta das cortes para conseguir autorização judicial [para o aborto] em caso de anencefalia no feto.

Então, fiz pesquisa, analisei arquivos judiciais, fiz um filme ['Uma História Severina'] e trabalhei com isso que a gente chama litígio estratégico nessa primeira ação que chega à Suprema Corte.

Se eu puder resumir uma história original, mas que se mantém como uma forma de fazer feminismo, é que o agendamento das questões, como a minha própria história com a Rebeca [do Projeto Vivas], vem do mundo vivido.

Ela não vem de uma idealização de um gabinete, de uma biblioteca, de ideias teóricas para o mundo, é de outro jeito. São as mulheres concretas que ou batiam na porta, ou chegavam perto e, à medida que fui me tornando um vaga-lume nessa questão, o agendamento [do aborto] vem ao mundo.

Às vezes para levantarmos o tema do aborto para debates utilizamos estratégias discursivas que nem sempre vão direto ao ponto. Para você, como foi o processo de falar abertamente sobre o aborto na nossa sociedade?

Se eu contasse uma história que não fosse a de todo mundo, estaria mentindo. Não me formei uma ativista ou acadêmica fora dessa ordem moral que me antecipou dizendo que o aborto é algo errado e que deveria ser um crime.

Então, todas nós tivemos que passar por um processo intenso — ou de experiência, ou de testemunho, ou de escuta, para conseguirmos reescrever esse marco. Agora, o que aprendi nesse processo, inclusive com muitas mulheres, é que não é uma estratégia discursiva [para falar sobre ser contra ou a favor do aborto].

A conversa sobre ser contra ou a favor está no mundo da política com uma pergunta muito masculina. É sobre ser contra ou a favor, como se o mundo fosse binário e como se esse fosse um tema de ser 'contra ou a favor'. O que as mulheres fazem é que muitas delas talvez nunca tenham pensado sobre fazer um aborto e se veem diante de uma necessidade de vida, de saúde.

E aí, elas vão encontrar um misto de uma coragem e solidariedade. Coragem, porque infringir a lei e colocar a própria vida em risco é uma experiência intensa. E solidariedade com outras mulheres, o que muitas vezes é uma experiência transformadora.

Então, o que aprendo nesse processo é como escutar as mulheres depois de um aborto, mesmo em situações dramáticas, como ser vítima de um estupro. E elas vão dizer: senti alívio.

Isso também refez o meu feminismo da escrivaninha, onde você está pensando e lendo ideias. É que no mundo do vivido, as decisões éticas, como a minha liberdade, a minha autonomia corporal, são vividas por afetos, que são afetos conhecidos por todas nós, como o alívio. É uma expressão ética de um processo decisório que envolve risco, coragem e que resulta nisso, autonomia.

E quando a gente vai discutir na abstração, nós vamos falar: 'você é contra ou favor?', 'quando a vida humana começa?'... Essas não são as perguntas das mulheres que fazem aborto. As perguntas delas são: 'Como consigo solucionar um problema diante de mim?'. E sabemos que, com problemas difíceis, as soluções nos levam a sentimentos quase que neutros como esse do alívio, para podermos recomeçar a vida.

Militantes dos direitos das mulheres fazem vigília em frente ao STF contra a criminalização do aborto no Brasil, na madrugada desta segunda-feira Imagem: Lúcio Távora/UOL

Em 2018, a gente teve uma grande discussão no STF justamente para descriminalizar o aborto. E você estava lá. Quais são as memórias que você tem desse momento e dessas mulheres? Havia muita esperança?

A esperança não se confunde com otimismo. Esperança é uma análise política sobre as condições possíveis de transformação. Então, desde esse momento, nós operamos com a esperança da transformação, de uma ação na Suprema Corte que estava à espera de um julgamento.

Lembro daquele momento comparado a um passado antes dele, quase que como uma cosmogonia [estudo de origem do Universo] de um novo processo, de um feminismo mais diverso no Brasil. E isso conectado a uma diversidade de movimentos. Ali, tinham mulheres trans, negras, juventudes, mulheres mais maduras. Foi muito evidente a dimensão daquilo, em particular com a Onda Verde na América Latina.

Isso ressoa inclusive nessas semanas de resposta ao PL [antiaborto]. Vemos pessoas que nós nunca veríamos se pronunciando sobre o tema, se posicionando, sem aquele medo que falamos no início da nossa conversa. Essas pessoas disseram que o que está sendo proposto é inaceitável, porque isso ultrapassou as fronteiras do tolerável.

E quem propôs esse PL não poderia imaginar. Achou que estaria fazendo mais uma vez uma aposta política com um escambo dos direitos das mulheres, das meninas, das pessoas que possam engravidar. Aí entra uma sociedade civil muito ampla — que vai de influenciadores, artistas, mulheres comuns e famílias até acadêmicos — dizendo: 'aqui, vocês não passam'. Então houve outro passo muito importante nesse tempo da espera do tempo da corte.

Quando lembramos o que foi o Festival pela Vida das Mulheres em 2018, o que foram as caravanas, o que tem sido agora a campanha 'Nem presa, Nem morta', vemos que é um processo lento, porque é lenta a transformação moral. A gente queria que fosse mais rápido, pois a vida das mulheres das meninas estão em risco.

Mas, a despeito dos terríveis anos do governo Bolsonaro, a despeito da dificuldade de transformação nessa matéria, nós não somos mais as mesmas. E nós vimos agora a força dessa transformação, com a reação de uma sociedade civil ao PL que protege os estupradores e persegue as meninas e as mulheres.

É importante dizer que o tempo da Corte para decidir essa matéria não é o tempo vivido pelas mulheres e pelas meninas. Elas vivem uma urgência. Mas, se há um efeito dessa espera, é o fortalecimento. Talvez é esse o trabalho que nós estamos fazendo coletivamente: entender que uma política criminal não é capaz de cuidar ou de reduzir o número de abortos.

É interessante falar sobre essa perspectiva de que exista uma diversidade no perfil das pessoas que defendem a descriminalização. Recentemente, o Datafolha mostrou que mesmo pessoas religiosas não estavam de acordo com essa PL.

As pesquisas de opiniões sobre questões morais são falhas, como disse o ministro Barroso. E isso é algo que o movimento das mulheres já vem dizendo há muito tempo porque você tem um erro metodológico. Quando você pergunta a alguém se a pessoa é contra ou a favor daquilo que é definido como um crime, as pessoas tendem a responder que é a favor que seja crime, porque está respondendo à norma.

Agora, quando a pergunta é se a pessoa conhece alguém que já fez aborto, ou se acredita que uma mulher ou menina que tenha feito deve ir para uma unidade socioeducativa ou para prisão, a resposta é diferente. Então, quando falamos que a sociedade brasileira é conservadora ou então que pesquisas de opinião mostram que a sociedade brasileira é contra o aborto, nós estamos mostrando apenas uma forma de fazer pergunta.

A mulher brasileira que faz aborto tem religião. Ela é católica, evangélica...Ela é uma mulher comum. A diferença é que a mulher mais impactada pela criminalização é a mais vulnerável. Ela é negra, jovem e pobre. O que a criminalização faz é transformar em maior risco um evento da vida de todas as mulheres. Aquelas que são brancas ou têm maior acesso à educação e à informação vão conseguir atravessar uma fronteira para irem para Argentina, sabendo onde fazer um aborto legal.

A criminalização deixa uma prática insegura, inclusive com risco de morte, para as mulheres que já estão à margem do poder e do sistema de proteção.

Ato pela descriminalização e pela legalização do aborto na avenida Paulista, em São Paulo Imagem: Bruno Santos/Folhapress

E até mesmo as mulheres que têm direito ao aborto legal no Brasil já enfrentam algumas dificuldades para acessar isso, como comentou a Rebeca Mendes do Projeto Vivas em entrevista à Universa. Nesse sentido, você que está defendendo o acesso a um direito básico das mulheres, como foi assimilar que, justamente por isso, teria que fazer parte de um programa de proteção aos defensores de Direitos Humanos?

Não só foi muito difícil de me afastar daquilo com o que eu me vinculava, como a sala de aula, a Universidade de Brasília, mas também tem uma passagem biográfica que, existencialmente, não foi só um aprendizado, mas algo difícil de processar, que foi ocupar o lugar da vítima.

A vítima tem um roteiro esperado, de como ela se comporta. E fazer essa passagem de uma ativista, que fala em nome das vítimas, para se tornar uma vítima, em que outros vão falar em meu nome, é passar para o escrutínio dos testes de validação dos outros. Porque não sou só eu me nomeando, dizendo o que aconteceu — as pessoas também vão investigar para saber se aquela história que eu conto é verdadeira ou não. E isso foi um aprendizado doloroso. Não apenas ocupar o lugar da vítima e não ser aquele outro lugar de tanta fortaleza, como também ser submetida a testes de verdade sobre a minha história.

Demorei para aceitar falar sobre esse tema. Não só por convicção do caráter contagioso disso para os odiosos, como era ter que me justificar, como por ter que me submeter a estes 'testes de verdade'. E chegou um momento que entendi que eu tinha falar sobre isso para mostrar a gravidade do que o ódio pode fazer.

Ainda me mantenho no serviço nacional de proteção. Ele é um espaço de cuidado, de compreensão, e também de convocação à responsabilidade do Estado brasileiro. Surpreendentemente, durante os anos do governo Bolsonaro sobre o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, da então ministra Damares Alves, com quem tinha desacordos públicos, me mantive no programa porque era uma convocação à responsabilização do Estado, caso algo me acontecesse.

Você chegou a comentar sobre esse caráter contagioso do ódio — quando pessoas comuns são transformadas em agressores — no UOL News. Naquela entrevista, você diz que uma consequência disso foi ter se transformado em 'radioativa', por ter que explicar às pessoas do seu convívio que, apenas por elas estarem com você, haveria um risco. Como que foi para você esse processo de decidir que talvez fosse melhor deixar o país?

Uma das características do ódio difuso, como as questões morais, é que não se sabe de onde vem, quem é o agressor. Porque não existe uma configuração tradicional de um inimigo ou de um desafeto. Não tem um rosto com nome, com cor. Ele opera na covardia do caráter difuso das redes. Então, isso gera um efeito contagioso para as pessoas perguntarem: 'tem risco?'.

A força desse redemoinho de ódio é que elas tornam a vítima radioativa. E utilizo essa alegoria do redemoinho porque carrega forças muito diferentes entre si. São movimentos que não têm um líder. As pessoas passam a perguntar: 'o que foi que você fez?'. Uma pergunta que é errada. Na verdade, a questão deveria ser: 'o que fizeram contra você?'.

Se você me perguntar qual é a magnitude do risco do meu retorno para o Brasil, eu diria que, na verdade, é uma vulnerabilidade que está em jogo. A passagem da vulnerabilidade para o risco só vou saber vivendo. Então, o meu calendário não está associado ao fim do governo Bolsonaro ou do início do governo Lula — é um tempo de espera da Corte. E, no momento, esse redemoinho se ativa, como aconteceu com essa PL. E aí a vulnerabilidade pode virar um risco porque sou um corpo exposto.

É óbvio que quero voltar, meu lugar é no Brasil, tanto que mantenho aí o meu trabalho, minha docência, reflexão, tempo de vida. Mas eu não vou permitir que a minha matéria mais uma vez passe a fronteira da vulnerabilidade para o risco, enquanto esse tempo da Corte for um tempo de espera, e passar novamente esse tempo do redemoinho [do ódio].

Isso vai acabar porque sou desimportante para o ódio, porque ele não é sobre pessoas, é sobre alvos que são criados. Temporariamente, no momento em que eu desaparecer, outro alvo é criado. Não é sobre a minha pessoa, mas é que, naquele momento, ocupei um espaço para o redemoinho se mover e gerar um alvo. Se aquela pessoa desaparece, outra é criada.

E o que o que te motiva a continuar com o seu trabalho?

Há 5 anos e meio, quando saí do Brasil, tinha o receio de ser abandonada. Porque a gente não existe como indivíduo. O castigo de fugir é um castigo de transformar alguém em um indivíduo. É isso o que faz a prisão — você transforma alguém em um indivíduo. E nós não sobrevivemos como indivíduos. Então, ser uma migrante, viver a pandemia, aquilo me dava muita dúvida, porque eu só sei fazer as coisas no coletivo, com outros.

Hoje, o que me motiva, é o que aprendi nesses anos. Continuaram a cuidar de mim. É quase que um dever de reciprocidade continuar cuidando de outras. É o meu lugar ser esse vagalume que apaga e acende para as mulheres anônimas procurarem para buscar informação. O meu lugar é estar junto com a Rebeca Mendes e criar o Projeto Vivas. Mais do que nunca esse passou a ser o meu lugar no mundo.

E, para finalizar, como você acha que podemos combater a desinformação e tentar ampliar essa conversa sobre o aborto de uma forma mais efetiva?

A gente tem que escutar as mulheres e as meninas que passam por essas experiências. Não é falar por elas, mas é falar com elas, aprender a falar com elas e desaprender a falar sobre como esse poder patriarcal misógino nos impôs uma linguagem sobre o aborto.

Então, as nossas perguntas não são sobre quando a vida humana tem início. Nossas perguntas são: 'por que prender uma mulher?', 'por que perseguir uma menina?', 'por que tirar uma menina da escola?'. Nosso primeiro exercício é sair a procura das perguntas que importam para essa conversa. E isso a gente não cria na solidão do nosso pensamento, aprendemos com as mulheres que viveram a coragem e o medo de um aborto clandestino no Brasil.

Escutar não é o mesmo que ouvir. A gente pode estar só ouvindo os ruídos que a outra diz, mas escutar é seriamente deixar-se afetar por alguém.

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