Kamala Harris não tem filhos. Por que as críticas a ela são tão irritantes?

Na semana passada, ressurgiram comentários antigos feitos pelo agora candidato republicano à vice-presidência, JD Vance, sobre pessoas sem filhos, ofendendo grande parte do público americano.

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Em uma entrevista em 2021, Vance descreveu o partido democrata como "um bando de mulheres com gatos e sem filhos", referindo-se diretamente à vice-presidente americana Kamala Harris, que tem dois enteados com seu marido, Doug Emhoff.

O comentário gerou críticas de pessoas como a atriz Jennifer Aniston e Meghan McCain, filha do falecido senador republicano John McCain. Muitos críticos apontaram também para a bilionária Taylor Swif, que tem 34 anos, não é casada, não tem filhos e é famosa pela dedicação a seus três gatos.

Vance esclareceu rapidamente que seus comentários tinham a intenção de ser sarcásticos, mas ele repetiu o argumento de que a esquerda estava adotando "políticas que são profundamente contra as crianças".

Então, por que esses comentários estão irritando tantas pessoas, especialmente mulheres, em todo o espectro político?

As opiniões de Vance têm conotações raciais

E as alegações pro-natalistas de Vance também não são novas.

O candidato a vice do republicano Donald Trump elogiou os esforços do primeiro-ministro autoritário da Hungria, Viktor Orban, para aumentar as taxas de natalidade de seu país. Entre as disposições, o húngaro incluiu incentivos financeiros para casais que têm filhos.

Vance sugeriu que os americanos sem filhos deveriam pagar mais impostos do que aqueles com filhos. E propôs dar às crianças o direito de voto, que os pais exerceriam em nome da prole.

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Acima de tudo, ele acredita que as pessoas sem filhos não têm "um investimento no futuro do país" e, portanto, deveriam ter menos voz ativa.

Ao lamentar o declínio da taxa de natalidade nos Estados Unidos, Vance também flerta com uma visão política racializada que se opõe à imigração e critica as taxas de natalidade das minorias, encapsuladas na violenta "Teoria da Grande Substituição, de extrema direita.

Vance condenou os Democratas por acreditarem que podem "substituir as crianças americanas por imigrantes", mesmo quando sua própria esposa, a indiana-americana Usha, filha de imigrantes, foi alvo de supremacistas brancos.

O Partido Republicano se opõe a muitas políticas governamentais que apoiam pais e filhos, com proteções e acomodações para trabalhadoras grávidas, expansão da cobertura do Medicaid (programa de saúde para pessoas de baixa renda) para mulheres no período pós-parto. Também inclui creche universal e pré-escola financiada pelo governo, além de benefícios que reduziriam a pobreza infantil, só para citar alguns.

Famílias presidenciais complexas

Há muito tempo, os republicanos insistem que estão lutando para defender a tradicional família - ou seja, a família nuclear heterossexual retratada no programa de televisão "Leave it to Beaver" na década de 1950.

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Harris não tem filhos biológicos, assim como cinco presidentes anteriores dos Estados Unidos também não tiveram. Inclusive, George Washington, o "pai da nação", que era considerado um dedicado padrastro.

A gravidez e o nascimento sempre envolveram riscos. A vergonha e o desejo de não expor experiências de infertilidade, aborto espontâneo e morte neonatal faz com que esses assuntos se tornem segredos de família.

No entanto, sabemos que Ronald Reagan e sua primeira esposa Jane Wyman, John e Jackie Kennedy e Michelle e Barack Obama passaram por esse tipo de sofrimento.

Os presidentes sempre tiveram vidas pessoais e familiares complexas, incluindo:

ficar viúvo e se casar novamente

ter casos

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ser alvo de rumores de relacionamentos com pessoas do mesmo sexo

ter filhos fora do casamento (inclusive com mulheres escravizadas)

Ex-presidentes adotaram filhos e criaram enteados, como Harris. Vale ressaltar que o republicano Trump, notadamente, tem cinco filhos de três casamentos diferentes.

Não é apenas uma questão americana

Os comentários de Vance revelam muito sobre o estigma duradouro que cerca as mulheres, especialmente aquelas em posições de autoridade e liderança, que não têm filhos. E esse exame minucioso da vida reprodutiva das lideranças do sexo feminino não se restringe aos EUA.

Na Austrália, um senador liberal afirmou, certa vez, que a ex-primeira-ministra Julia Gillard não estava apta a liderar o país porque era "deliberadamente estéril".

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Ataques semelhantes foram dirigidos à primeira-ministra da Nova Zelândia, Helen Clark. No Reino Unido, tanto Theresa May e Nicola Sturgeon foram alvos de especulações e comentários negativos sobre o fato de não terem herdeiros biológicos.

No entanto, quando a então primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, teve um bebê enquanto estava no cargo, ela também foi criticada. E quando Ardern renunciou, uma manchete da BBC fez a pergunta sexista: "As mulheres podem realmente ter tudo?"

A ideia de que uma boa liderança requer filhos do mesmo sangue raramente aparece em discussões sobre líderes masculinos sem descendentes diretos, como Emmanuel Macron, da França, ou Shinzo Abe, do Japão.

Os ocupantes de altos cargos masculinos também não são questionados sobre seus níveis de envolvimento como pais. A cientista política Jessica Smith argumenta que os homens na política ainda têm uma "cláusula de exclusão" automática em relação às discussões sobre família.

Biologia como destino

Em 2024, é incompreensível sugerir que uma pessoa que não possa engravidar ou que opte por não engravidar seja menos comprometida com a sociedade do que um pai.

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No entanto, persistem suposições agressivas baseadas em gênero. Acusam as mulheres de serem egoístas, "antinaturais", feministas, imaturas e de terem ódio de crianças.

Em termos mais amplos, muitas mulheres no Ocidente, quer tenham filhos ou não, acreditam que Vance está apenas dizendo em voz alta o que muitas pessoas pensam, silenciosamente. Com muita frequência, as mulheres são julgadas apenas por meio de lentes biológicas. Nosso valor, nossa capacidade de contribuir de forma significativa para a sociedade, é reduzido à nossa capacidade de reprodução.

Nada mais do que fazemos importa. No caso de Harris, isso significa ser uma "Momala" (título dado pelos enteados e que junta a palavra "mom" (mãe, em inglês), e Kamala), uma tia amada, uma "irmã mais velha" e uma esposa, além de ser uma mulher de cor que quebrou vários tetos de vidro.

No Ocidente, as mulheres e as pessoas que podem engravidar vivem em um momento sem precedentes. O efeito cumulativo da revolução sexual e dos movimentos feministas e LGBTQ+ nos deu a capacidade de escolher como viver e amar.

Apesar do retrocesso do direito ao aborto nos Estados Unidos, as mulheres hoje têm um nível de controle sobre suas vidas que era inimaginável em 1946, o ano em que Trump nasceu.

No entanto, como as opiniões de Vance sobre essa questão e outros problemas deixam claro, é exatamente esse controle que muitos conservadores querem restringir ou retirar..The Conversation

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*Prudence Flowers, Professora Titular de História dos Estados Unidos, Faculdade de Humanidades, Artes e Ciências Sociais, Universidade Flinders

Este artigo é republicado do The Conversation sob uma Creative Commons license. Leia o original aqui.

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