'Pedi socorro e me jogaram na rua': crescem casos de estupro em baladas

Em duas ocasiões diferentes, Thamires*, 32, sofreu assédio numa mesma boate em São Paulo. E no lugar de acolhimento, foi expulsa da festa ao pedir ajuda. Com Nilza*, 38, foi pior: ninguém percebeu que ela ficou inconsciente após um gole de energético. Foi carregada por um desconhecido de uma boate em Santa Catarina e estuprada.

Somente em São Paulo, nos últimos seis anos, a polícia registrou aumento de 62,5% no número de ocorrência de estupro em casas noturnas (foram 32 ocorrências em 2017 e 52 em 2023). Os dados foram obtidos por Universa através de Lei de Acesso à Informação.

Ainda assim, a ex-promotora de SP e advogada especialista em direito das mulheres Gabriela Manssur enxerga avanço nas medidas de proteção a esse público nesses locais, como a implementação de duas leis estaduais em 2023, que obrigam bares, restaurantes, casas noturnas e de eventos a adotar medidas para auxiliar quem se sinta em situação de risco, e capacitar os funcionários desses locais para identificar e combater a violência sexual.

"Ouvi que bebo demais"

Thamires sempre saía acompanhada com um mesmo grupo de mulheres, até pararem numa casa de show em que a festa era voltada para o público lésbico, no centro de São Paulo. Numa primeira vez, sofreu assédio de uma conhecida. Mas tempos depois voltou, e a situação foi pior: no primeiro gole de um refrigerante com vodka, sentiu seu corpo apagar.

Lembro de pedir para os seguranças do local me levarem para um hospital, a 500 metros dali, pois eu sabia que eu ia desmaiar. A organização da festa disse que ia me ajudar e que o socorro estaria na porta, mas quando saí, não tinha nada. Apenas fui expulsa e sem minhas coisas, ela relata.

A vítima afirma que, no hospital, localizaram uma substância em seu sangue. Ou seja: possivelmente tentaram dopá-la. 'Fiquei revoltada, e ainda fui expulsa de uma festa onde claramente iria ser presa de alguém. Pedi socorro e me jogaram na rua."

Ela voltou ao local em outra ocasião para conversar com a promotora da festa, e sofreu mais uma violência. "Ouvi que bebo demais, me ofereço e depois falo sobre assédio. Essa promotora ainda disse que não mancharia a sua festa e que, se eu continuasse com essa história, ela iria atrás de mim."

Thamires diz que nunca registrou queixa, não só por acreditar que nada aconteceria, pois não tinha provas suficientes, mas por questões de segurança e para preservar sua sexualidade.

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"Escolhi esquecer a história e seguir vivendo. Me senti sozinha e achei na terapia e espiritualidade uma base para entender o que aconteceu e até mesmo para ter ferramentas de autocuidado para evitar passar por algo assim."

Rede de apoio

Para Gabriela Manssur, que é ainda presidente do Instituto Justiça de Saia e idealizadora do Projeto Justiceiras, o acolhimento das vítimas que sofrem violência nesses locais ainda é falho. Ela fala em falta de capacitação dos funcionários para melhor proteger e encaminhar as vítimas para as autoridades necessárias.

Aponta ainda que por isso mesmo criou o protocolo "Lugar de Mulher é Onde Ela Quiser", que oferece a construção de um canal de denúncia, além de um treinamento para os colaboradores e responsáveis por estabelecimentos, para saberem atender e apoiar a vítima, bem como testemunhas e familiares, preservar provas e tomar todas as medidas necessárias.

As leis são imprescindíveis para a população ter consciência de que o assédio existe. O caso de estupro cometido pelo jogador Daniel Alves trouxe à tona o quanto um protocolo é importante para a manutenção das provas, bem como para o acolhimento da vítima em casos de assédio e importunação sexual em bares e restaurantes, ela observa.

Caso Daniel Alves

Em fevereiro deste ano, o Tribunal de Justiça da Espanha condenou o ex-jogador da seleção brasileira Daniel Alves a quatro anos e seis meses de prisão pelo estupro de uma mulher de então 23 anos.

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O caso aconteceu em dezembro de 2022 e começou com a ativação de um protocolo chamado "No callem", que auxilia vítimas de violência sexual no momento (ou quase) em que o crime acontece. O protocolo foi acionado quando a vítima disse ao segurança da boate que havia sido violentada.

Na mesma hora, policiais foram acionados e convenceram-na a denunciar. Enquanto isso, a área onde o crime aconteceu foi fechada para perícia, que chegou rapidamente ao local. A coleta de provas e exames de corpo de delito foram determinantes para que Daniel Alves fosse condenado.

A vítima foi atendida por psicólogos e psiquiatras desde o primeiro dia — todos ouvidos durante o julgamento e convergentes sobre o estado dela: em choque, falando pouco, muito nervosa.

"Estava sendo jogada de um lado para o outro"

Natural de Santa Catarina, Nilza*, 38, afirma que só deixará a filha sair em sua companhia. A menina, hoje com 9, foi fruto de um estupro que ela sofreu na saída de uma boate.

Ela lembra que foi com uma amiga numa casa noturna num sábado pós-carnaval, para conhecer uma pessoa com quem falava por aplicativo de encontros. Como bebeu vinho durante a tarde, combinou que ficaria na água com gás.

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Em pelo menos cinco ocasiões em que dançava na pista, um homem a quem descreve como "feio e desengonçado" insistiu para dançar com ela, o que foi negado. Mas num determinado momento, com energético na mão, começou a ficar sem controle do corpo e, quando viu, "estava sendo jogada de um lado para o outro por essa pessoa."

Na hora de ir embora, mesmo vendo que eu nem me sustentava, minha amiga deixou aquele homem estranho me levar embora. E ninguém interferiu.

Ela tem certeza de que fora dopada, pois lembra que em situações anteriores "poderia estar bêbada o quanto fosse, mas ninguém encostava em mim sem que eu desejasse".

"E um cara como ele, que falava errado, vulgar, com aparência cafona nunca colocaria a mão voluntariamente. Jamais teria qualquer envolvimento, mesmo que casual, com um homem com perfil daqueles. E envolvimentos casuais nunca foram o meu estilo."

O homem levou Nilza para a casa dele. Ela lembra de flashes, como estar sendo enforcada, mordida e pedindo para ele parar.

Quando acordei, já era tarde. Estava com febre e toda roxa, como se tivesse levado uma surra. Estava confusa, me sentindo suja, e sabia que havia algo errado.

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Ainda sem entender o que havia acontecido, e de que maneira, tomou a pílula do dia seguinte.

Denúncia veio 9 anos depois

Ela ainda levou meses para entender que foi estuprada. No meio do percurso, descobriu-se grávida, e escolheu enterrar o assunto.

Depois que eu consegui entender o que aconteceu naquela noite, eu passei a tomar vários banhos por dia. Era como se quisesse lavar a sensação de sujeira, o nojo do toque. E passei a praticar atos de automutilação.

Nilza mudou de cidade e de emprego para tentar recomeçar longe das lembranças da agressão sofrida, mas o estuprador descobriu onde ela estava e voltou a persegui-la.

A gota d'água veio no fim do ano passado, ela conta, quando o viu observando sua casa e tentando abrir a janela de seu quarto. Temendo novas agressões, criou coragem para denuncia-lo.

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"Tenho medo que ele tente se aproximar da minha filha e queira fazer o que fez comigo. Resolvi buscar a Justiça não apenas por mim, mas por todas as mulheres que também passaram por isso, inclusive aquelas que não conseguiram entender que tiveram relações sexuais sem estar em condições de consentir."

Ela nunca mais voltou em uma casa noturna, mas já sabe o que fará quando chegar a hora da menina.

"Quando minha filha for para baladas, quero acompanhá-la, nem que seja só para segurar o copo dela."

Ela ainda pensa em levar para a Assembleia Legislativa catarinense um projeto em que condenados por crimes sexuais e pedófilos tenham seus nomes e imagens divulgadas, semelhantes à lei estadual do Mato Grosso.

Já imaginou chamar um prestador de serviços em sua casa, estar sozinha, e ser um estuprador? Ou contratar alguém para trabalhar com seu filho e ser um agressor?

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