'Perdi toda a minha família e comemorei infarto porque queria morrer'
Christiane Luck Macieira, de 55 anos, perdeu os dois filhos, Anna Carolina e Pedro Régis, que morreram de câncer, e o marido, Cláudio, vítima da covid-19, em um período de dois anos.
Régis, o pai de seus dois filhos, tinha a Síndrome de Li-Fraumeni. A condição, rara e hereditária, causa alteração no TP53, principal gene supressor de tumores no organismo. Ele morreu de câncer em agosto de 2023, aos 54 anos.
Depois de sobreviver a um infarto, Christiane percebeu que, embora quisesse morrer para encontrar os filhos, ainda não era hora de partir. Ela se fortaleceu com mensagens de apoio, se apegou à fé e passou a ajudar outras pessoas a enfrentarem o luto.
A convite da Editora Legado, assina um capítulo do livro Fortes & Inspiradoras, a ser lançado em setembro.
A Universa, ela conta sua história:
'Começou com uma febre'
"Régis e eu nos casamos em 1993, quando eu tinha 22 anos. Ele me deu meus maiores presentes: meus filhos Anna Carolina e Pedro Régis. O casamento durou dez anos.
Depois, conheci outra pessoa e me casei novamente. Não tive filhos do meu casamento com o Cláudio. Já Régis casou-se com outra mulher e teve mais uma menina, Beatriz.
Em agosto de 2009, aos 12 anos, Anna começou a ter uma febre vespertina, que tinha início por volta das 18 horas. Era uma febre alta. Ela tinha colocado aparelho nos dentes, então eu pensava que pudesse ser um quadro inflamatório. A princípio, os médicos acreditavam se tratar de mononucleose. Então, começamos a perceber a presença de células atípicas. Depois de um mês, veio o diagnóstico: leucemia.
Meu mundo caiu. Não conseguia acreditar. Até então, os meninos eram completamente saudáveis. Se alimentavam bem e mantinham rotinas bastante ativas. Anna praticava natação e balé. Já Pedro jogava futebol, basquete e tênis.
Ao longo de dois anos de tratamento, Anna fez quimio e radioterapia. A vida foi seguindo. Ela fez 15, 16, 17 anos, até então, sem sinais da doença. Um câncer é considerado curado quando não há recidiva por ao menos dois anos, então estávamos otimistas.
Durante todo esse tempo, Anna foi criada com muito cuidado. Quando ela foi aprovada em medicina, pensei: 'Meu Deus, e agora? Ela não pode se expor assim.'
Resisti, mas não tive escolha: era o sonho dela. Falei com minha chefe, peguei uma licença e matriculamos a Anna em São Paulo. Eu era tão zelosa que escolhi um apartamento em frente à faculdade. Assim, ela não precisaria pegar transporte.
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Quero receber'Raio não pode cair duas vezes'
Passei dois meses em São Paulo, arrumando o apartamento. Então, fiquei sabendo que Pedro havia rompido o ligamento do joelho durante uma partida de futebol e voltei para Fortaleza.
Pedro precisou passar por cirurgia, mas nada grave. O tempo passou, e tudo estava bem. Certo dia, ele foi assaltado saindo da escola. Precisou correr, e a dor ficou insuportável. Então, fizemos um exame de ressonância magnética, que apontou um osteossarcoma. No português claro, um tumor maligno no osso. À época, ele tinha 16 anos.
Eu olhei para o médico e perguntei: 'Doutor, o senhor tem certeza?'. Ele assentia que sim. Eu disse: 'Eu sei que o senhor é ótimo, mas olha de novo. Um raio não pode cair duas vezes no mesmo lugar. Um filho meu já teve câncer, mas dois?'.
Nessa hora, Cláudio, meu marido, já estava com lágrimas nos olhos. E então o médico respondeu: 'Certeza absoluta. Eu rasgo meu diploma se isso aqui não for um câncer'. Uma biópsia comprovou o diagnóstico e fomos a São Paulo para fazer o tratamento.
'Descobrimos síndrome hereditária'
Pedro e o pai descobriram ter câncer no mesmo mês, com dias de diferença. Régis começou a sentir uma dor muito forte no fêmur. Fez uma série de exames, entre eles um hemograma, que veio alterado, e descobriu a leucemia.
Começamos a achar aquilo muito estranho. Pai, filho e filha, todos com a mesma doença, e em um curto período de tempo? Como era possível? Fomos investigar e um exame genético apontou a resposta: Régis tinha uma síndrome hereditária rara, que causa predisposição a vários tipos de câncer. É a Li-Fraumeni, é pouco conhecida.
Em meio ao tratamento, Pedro teve de tirar nove centímetros do osso da perna esquerda e colocou uma prótese de titânio, mas ficou com atrofia muito grande e nunca mais teve estabilidade no joelho. Depois da cirurgia, ainda fez quatro meses de quimioterapia.
Após o fim do tratamento, em janeiro de 2017, Pedro voltou para o colégio. Depois, prestou vestibular e foi cursar engenharia. Assim como a irmã, queria medicina, mas optou por um curso mais curto. Sabia que sua vida seria breve.
Oito meses depois, descobriu um novo câncer. Um nódulo no pulmão. O tumor foi retirado sem maiores problemas. Nessa mesma época, a irmã, Beatriz, descobriu uma leucemia e morreu em pouco tempo, aos 10 anos. Ela chegou a passar por um transplante de medula, que teve a mãe como doadora, mas a doença voltou.
Àquela altura, a família estava devastada. E, então, Pedro descobriu um terceiro câncer, desta vez mais agressivo, no tórax. Eu fiquei desesperada. Chorava tanto. E ele pegava na minha mão e dizia: 'Calma, mamãe. Eu não vou morrer agora. Vou te dar muito trabalho ainda. Não chora, mamãe, vai dar tudo certo.'
Pedro foi desenganado pelos médicos. Eles diziam que não adiantava tratar, que o câncer voltaria. Mas eu sempre acreditei no milagre. Em uma tentativa de salvá-lo, fomos novamente a São Paulo. Em seis meses de quimioterapia, o tumor sumiu. Meu filho veio a morrer dali a mais de um ano, em novembro de 2020, aos 23 anos. A causa foi um glioblastoma, o tipo mais comum de câncer cerebral.
Durante todo o tratamento, Pedro nunca reclamou, assim como a Anna. Nunca ficou de mal com a vida. Ele dizia que a felicidade era apenas um ponto de vista. Mesmo com câncer, acreditava que podia ser feliz.
'Você já me levou tudo'
No final da vida, acabou perdendo os movimentos do corpo e, naturalmente, foi-se também a vontade de viver. Em determinado momento, ele disse: 'Mãe, estou me tornando um prisioneiro do meu próprio corpo. Se eu não tiver mais minhas habilidades motoras e neurológicas, não quero mais viver. Não prolongue a minha vida.'
Em dois anos, perdi toda a minha família. Em fevereiro de 2021, meu marido, Cláudio, contraiu covid. Passou dias e noites na UTI e veio a morrer em um mês.
Cinco meses depois, Anna descobriu um novo câncer: um glioblastoma, o mesmo tipo de tumor que levou a vida de Pedro. E então começou novamente nossa batalha.
Eu dizia: 'Deus, eu só tenho a Anna. Você já me levou tudo. Meu pai, minha mãe, meu marido, meu filho. Você não vai me deixar a Anna?'. E ela falava: 'Calma, mamãezinha, vamos lutar'. Ela era muito mais forte do que eu.
Anna morreu em novembro de 2022, aos 25 anos, um ano e três meses depois de se formar em medicina. Pouco antes, perdeu os movimentos do corpo e depois entrou em coma. No final da vida, usava cadeira de rodas e precisava de cuidados em tempo integral.
Um dia, ela disse: 'Mãe, depois de perder seus pais, Drinho e Cláudio, você ainda tem de me dar banho. Você não merece'. E eu respondi: 'Filha, essa é a maior honra que você pode me dar: te tratar com todo o amor e carinho'.
Depois da morte de Anna, Régis já sabia o que o aguardava. Ele disse: 'Agora a doença vai vir em mim'. E realmente veio. Ele, que já havia lutado a vida inteira contra o câncer, descobriu um mieloma múltiplo, tipo de tumor resistente e agressivo que se desenvolve na medula óssea. Iniciou o tratamento, mas morreu em pouco mais de um ano, no dia dos pais de 2023.
Os meninos vieram buscar o pai.
'Comemorei pensando que ia morrer'
Depois de tudo o que aconteceu, sofri um infarto. Senti uma dor muito grande no peito e pensei que pudesse ser angústia, mas resolvi ir ao pronto-socorro. Lá, me informaram que eu estava infartando. Comemorei. Pensei: 'Eu vou morrer! Vou me encontrar com meus filhos no céu!'.
E então o médico disse: 'Você não vai agora. Seu coração já está se recuperando'. Percebi que Deus não me queria naquela hora. Eu ainda tinha uma missão, mas não sabia qual. Pedia a Deus para morrer também.
Certo dia, entrei nas minhas redes e me deparei com milhares de pessoas pedindo para me seguir. Até então, meu perfil era reservado para amigos. Sempre fui muito discreta e nunca gostei de aparecer. Naquele dia, tornei minha conta pública e então recebi inúmeras mensagens de solidariedade. Aos poucos, fui me fortalecendo.
'Encontrei carta de despedida'
Em dado momento, fui convidada a dar meu testemunho em uma igreja. Descobri uma força sobrenatural, e com ela, a minha missão. Hoje, muitas pessoas chegam até mim e dizem: 'Chris, eu ia cometer suicídio, mas conheci seu perfil e desisti'.
Esse é o meu propósito: transformar minha dor em amor ao próximo.
Se já tive raiva de Deus? Sim, com certeza. Senti raiva de Deus quando o médico da Anna me ligou e disse: 'Venha agora. Sua filha está em coma. Ela tem horas de vida'. Passei 24 horas com muita raiva. Eu dizia: 'Deus, você não vai me tirar o que tenho de mais precioso nessa vida'. Tive raiva de verdade, não vou ser hipócrita.
Depois, fiquei pensando sobre como seria a vida da minha filha se ela tivesse sobrevivido. Entendi que a morte seria o melhor. Então me ajoelhei e pedi perdão.
Três dias depois que a Anna morreu, encontrei nas notas do celular dela uma carta de despedida. Ela escreveu: 'Mãe, mantenha sua fé. Sua fé é linda. Ninguém tira ela de você'. Eu chorei tanto. E é verdade. Eu sempre digo que a fé me salvou.
Não sei o que o futuro me reserva, mas prometo que vou cumprir minha missão —por mim, mas principalmente por eles."
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